“E agora que vocês viram no que a coisa deu, jamais esqueçam como foi que tudo começou” (Bertolt Brecht)

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

O legado dos EUA no Iraque, oito anos depois da invasão.

     Passaram-se oito anos e os Estados Unidos fecharam a porta do Iraque deixando um desastre atrás dela. Durante o conflito, morreram mais de 100 mil civis, 4.800 soldados da coalizão perderam a vida (4.500 dos EUA), junto com 20 mil soldados iraquianos. Para os iraquianos, o legado da invasão é morte, dezena de milhares de mutilados, insegurança, desemprego, falta de água potável e eletricidade. A democracia exportada com bombas ultramodernas não mudou o curso das coisas.
Eduardo Febbro
     Passaram-se oito anos. Como pedras impiedosas que semearam a morte. Como aquelas horrendas imagens que surgiam à beira das estradas no caminho em direção a Bagdá. Fumaça, destruição, cadáveres e silêncio. Parece ontem. O cruzamento de estradas assinalava duas direções: Basra ou Bagdá. Através da estrada até Bagdá, as sucessivas batalhas da ofensiva emergiam como cogumelos despedaçados: ônibus bombardeados, veículos calcinados, tanques arrebentados e crateras imensas cavadas pelos mísseis. Os tanques iraquianos dispostos em fila à beira da estrada pareciam latas de sardinha queimadas. Frente a eles, os tanques Abrams norte-americanos tinham o aspecto de mastodontes invencíveis. “Quando começamos a avançar por esse trajeto, os soldados iraquianos saíam dos tanques para nos pedir água e comida”, contava com lástima um oficial norte-americano.
     Os primeiros grandes subúrbios de casas baixas pareciam emergir de um pesadelo. As casas e as lojas tinham virado trincheiras e havia centenas de pessoas caminhando pelas ruas, levando colchões, cadeiras, roupas, televisões, máquinas de lavar roupa, velhas máquinas de costura. Bagdá, ao longe, estava envolta em uma espessa nuvem de fumaça escura. Os poços e as trincheiras de petróleo seguiam ardendo. Saddam Hussein havia mandado incendiá-los para impedir que os satélites norte-americanos obtivessem imagens precisas do estado de Bagdá. Depois, a cidade aparecia finalmente. Ferida e assustada.
     Em cima do capô de um automóvel que havia avançado sobre a calçada, um livro de capa azul exibia suas páginas milagrosamente intactas. Dentro do veículo, o corpo de um homem com o corpo tombado para a frente tinha a cabeça partida e parte do cérebro esparramado em cima do porta-luvas. Ninguém prestava atenção. A cem metros do automóvel, um grupo de homens tentava, em vão, derrubar uma imensa estátua de Saddam Hussein erguida no centro de uma rótula. Do outro lado, três mortos jaziam à margem da rua. Um grupo de cachorros sarnentos disputava a propriedade do corpo de um dos mortos: um menino de seis anos estava ali também, sem um sapato e sem a metade do rosto.
     Saddam Hussein havia desaparecido. O exército ocupante se instalava em tendas nos territórios de sua nova conquista, ocupava os palácios de quem tinha sido seu aliado, se apoderava das ruas da cidade transformada e restaurada pelo ditador com a ajuda dos arquitetos enviados pelo Ocidente nos anos em que Saddam era um sócio confiável e ninguém se importava que ele afogasse seu povo em uma lagoa de sangue. O choque de civilizações acabava de se plasmar em sua versão mais violenta: a de um país milenar e reprimido, a de uma potência ocidental que havia enviado do céu uma chuva de democracia comprimida em cachos de bombas.
     Há lugares cujo nome e os símbolos que evoca sobrevivem aos estragos do tempo e das guerras. Bagdá tinha esse dom. Horrível e mágica. Histórica e contemporânea. Ameaçadora e hospitaleira. As Mil e uma Noites, uma grande livro onde, a cada virada de página, havia muitos mortos. O soldado Higins tinha visto inúmeras fotos de Bagdá antes da invasão, mas nunca havia imaginado a cidade real que encontrou quando sua unidade entrou na capital depois do que qualificava como “um combate épico” contra um inimigo “inferior, mas disposto a tudo”. Higins dizia que, até sua chegada a Bagdá, não havia conhecido a morte e tampouco imaginado como seria. Agora já tinha se acostumado ela, mas o primeiro morto seguia fazendo companhia a ele em sua memória. “A primeira vez que matei um homem foi à noite. Fiquei com uma sensação estranha, irreal. Não posso esquecer.
     Minha unidade encontrava-se na periferia de Bagdá. Fazíamos parte de uma patrulha avançada que estava por penetrar na capital desde o sul. Tínhamos recebido a ordem de consolidar a zona e seguir adiante. Seguimos as instruções e no início da madrugada começaram a nos atacar. Choviam tiros de metralhadoras e bazucas. Como não se via nada usamos os fuzis com visão noturna. O primeiro homem que apareceu na mira avançava por uma rua lateral, ocultando-se entre as portas. Era um alvo fácil. Deixei que avançasse. Apontei e disparei. Ele cai no chão e voltou a se levantar, cambaleante. Disparei mais duas vezes. Não posso dizer que nesse momento senti que o tinha matado. Com as miras de visão noturna tudo é visto de um modo distinto, como se fosse um jogo informático. A realidade é mais lenta e as coisas têm a forma de silhueta”.
     “Sei que está por aí, Saddam é eterno. Um império não pode com ele. Saddam vive até no silêncio”, dizia o empregado de um hotel que havia desaparecido em um incêndio. A única coisa que estava ali, pulsando no meio da fumaça, era o futuro. O futuro já estava escrito nas múltiplas sequências da queda de Bagdá na indolência e ignorância dos ocupantes. Essa ignorância brutal era a matéria prima da ação de Paul Bremer, o ineficiente e teimoso responsável pela CPA, a Autoridade Provisória da Coalizão encarregada de administrar o Iraque com estatuto de autoridade governamental.
     A guerra começou em 19 de março de 2003. Cerca de três semanas mais tarde, Bagdá caiu nas mãos da coalizão. No dia 1° de maio de 2003, o presidente George W. Bush deu por encerrada essa fase com a expressão triunfalista “missão cumprida”. No dia 6 de maio, Bush nomeou Paul Bremer. O “vice-rei” Bremer chegou a Bagdá e abriu a caixa de Pandora com um projeto político, econômico e administrativo delirante: converter o Iraque em uma representação dos Estados Unidos no Oriente Médio : liberal, democrática, permissiva, um centro de negócios ao melhor estilo dos falcões da Casa Branca.
     Ele não tinha a menor ideia do chão em que estava pisando. Sua primeira decisão consistiu em decretar a “desbaasificação” da sociedade iraquiana. Bremer pretendia sanear o sistema político com uma ordem inaplicável: fazer desaparecer o partido Baas e seus representantes em uma sociedade onde, para conseguir trabalho ou ser membro da administração pública, era obrigatório aderir ao Baas. Paul Bremer decretou a demissão de milhares de empregados e executivos da administração pública, dos organismos encarregados do petróleo, dos bancos, das universidades. Onze dias depois de ter assumido suas funções, Bremer assinou outro decreto enlouquecido: dissolveu o exército, a aviação, a marinha, o Ministério da Defesa, os serviços de inteligência. Seu frenesi ignorante chegou ao ponto de, em um país que saía de um prolongado embargo internacional, que estava em guerra, onde os hospitais estavam destruídos e faltava até algodão, lançar uma campanha contra o tabagismo e elaborar um projeto para distribuir rações alimentares com cartões de crédito.
     Passaram-se oito anos e os Estados Unidos fecharam a porta do Iraque deixando um desastre atrás dela. Durante o conflito, morreram mais de 100 mil civis, 4.800 soldados da coalizão perderam a vida (4.500 dos EUA), junto com 20 mil soldados iraquianos. “Depois de todo o sangue derramado, o objetivo de que o Iraque governe a si mesmo e seja capaz de garantir a segurança se cumpriu”, disse o secretário de Defesa estadunidense, Leon Panetta. O legado da invasão é outro: morte, dezenas de milhares de mutilados, insegurança, desemprego, falta de água potável e eletricidade. A democracia exportada com bombas ultramodernas não mudou o curso das coisas. A queda do déspota permitiu que os xiitas, majoritários no país e reprimidos até a barbárie por Saddam Hussein, tomassem as rédeas do poder sem que isso implicasse unidade ou estabilidade. O Iraque segue sendo um país em carne viva onde as feridas da ocupação não se fecharam.
     Passaram-se oito anos e o espelho de ontem está intacto, a voz de Fatima ainda ressoa naquela cidade em chamas. As lágrimas brotavam de seus olhos e, ainda assim, era capaz de sorrir e chorar ao mesmo tempo. Um sorriso de anjo, de criança, o sorriso da desnudez de um despossuído. Fatima observava os militares norte-americanos com um incessante sinal de pergunta. Eles a tomavam por louca. Quando passava diante dos soldados, a mulher os saudava e perguntava: “por quê?” Às vezes, davam-lhe comida, água e um pouco de dinheiro. Fátima aceitava, mais para se aproximar daqueles que tinham destroçado sua realidade do que por fome.
     Ninguém entendia sua pergunta. Por trás de seu sorriso tenro e luminoso, a tristeza marcava seus traços. Fátima estava vencida. Enquanto contemplava as ruínas do que uma vez foi sua casa, a mulher voltava a perguntar “por quê?”. Quando falava, uma careta infantil e piedosa se desenhava como um relâmpago.
     Fátima tinha perdido tudo. Dias após dia, com um empenho obstinado, a mulher escavava os escombros do edifício familiar destruído por uma bomba, buscando os restos de seus pertences passados. Seu filho menor a acompanhava sempre. Ia de um lado a outro de Bagdá apegado a ela como um animal indefeso. Fátima revolvia as entranhas de pedras destroçadas e retirava uma frigideira, um retrato intacto, um cachecol, um par de sapatos, alguma cadeira desconjuntada pela explosão, pedaços de recordações e bens devastados. O living, a sala de estar, a cozinha, o quarto, os espaços de sua intimidade estavam soterrados por toneladas de pedra e poeira.
     Fátima mostrava o que havia sobrado de sua casa : um monte de ferro e cimento sobre o qual se superpunha seu eterno sorriso. Ela também tinha no olhar essa marca feita de solidão, de luz, de incompreensão, de pura intempérie: a marca da injustiça. A mulher dizia que, talvez, o futuro de seu filho não seria parecido com o seu, que talvez ele conheceria a liberdade, um trabalho decente e a democracia. Fátima se projetava no filho que restou porque seu presente era um lugar inabitável. Era escombros e a gaveta de uma cômoda miraculosamente intacta de onde tirava, assombrada e agradecida, duas fotos de seu marido e de sua filha morta, esmagada com seu pai nas ruínas, um par de meias e uma caixa de costura.

(Eduardo Febbro - Correspondente da Carta Maior em Paris - Tradução: Katarina Peixoto)
SAIBA MAIS:
DOCUMENTÁRIOS
Sem Fim à Vista
     Como não é difícil encontrar pessoas desfavoráveis a Guerra do Iraque, que fizeram inúmeros documentários contra a batalha, o americano Charles Fergunson decidiu fazer um filme contando o lado daqueles que apoiaram a decisão de Bush desde o começo, analisando o que aconteceu para que a disputa ficasse Sem Fim à Vista. O cineasta tenta entender em que pontos o governo americano errou para que a guerra se tornasse a segunda mais cara da história, perdendo apenas para a Segunda Guerra Mundial.
     Fergunson fala com soldados que combateram no Iraque, com membros do governo Bush e analistas, todos eles pessoas que aceitaram voluntariamente participar daquele momento histórico com a certeza de que a invasão seria a melhor coisa a se fazer. Cada um conta o que viu e o que sentiu no decorrer dos anos, apontando os inúmeros erros cometidos principalmente por Donald Rumsfeld e Paul Bremer, além de outros membros do governo, para que a situação acabasse saindo do controle.
     O diretor analisa cronologicamente a guerra até 2007, quando ela já havia custado quase US$ 2 trilhões, além de um grande número de vidas, entre americanos e iraquianos, com destaque para o brasileiro Sérgio Vieira de Melo, que representava uma esperança de solucionar o problema. Mesmo ainda acreditando que a guerra deveria ter acontecido, os entrevistados contam o que sabem para que o espectador entenda o ódio que os iraquianos sentem pelos americanos e perceba que é difícil achar uma solução para o problema.
     Descontente com o governo de George W. Bush, o milionário Charles Fergunson decidiu bancar de seu próprio bolso um documentário que explicasse a Guerra do Iraque de uma forma que nenhum outro tinha feito. Desta forma ele decidiu procurar não aqueles que sempre se mostraram desfavoráveis, mas aqueles que apoiaram e ainda apóiam a medida. O filme, primeiro de Fergunson, foi um dos indicados ao prêmio de melhor documentário do Oscar 2008.
Direção: Charles Fergunson
Duração: 102 minutos
Ano: 2007
Áudio: Inglês - Legendado

 Guerra Feita Fácil – Como presidentes e peritos nos enrolam para a morte
     Narrado por Sean Penn, o filme mostra como a imprensa americana e os Governos estadunidense praticaram a mentira, e, as mensagens belicistas para justificar uma guerra após a outra durante os últimos 50 anos.
     Distorções nos noticiários, mensagens pró-guerra levaram os EUA a ser o país com mais poder bélico sozinho que todas as outras noções juntas, consolidando seu status de Império. Imagens reveladoras que mostram a maneira sórdida que vários presidentes enganaram seu povo através da mídia corporativa.
Direção: Loretta Alper & Jeremy Earp
Duração: 73 min.
Ano: 2007
Áudio: Inglês/Legendado


 FILMES
Zona Verde
     O filme é inspirado no livro de não ficção “A vida imperial na cidade Esmeralda”, do repórter Rajiv Chandrasekaran, que é um relato sobre os indicados para administrar o Iraque, pelo governo Bush, após a invasão. Matt Damon se inspirou em um oficial do exército americano, Richard Gonzalez, que chefiou uma equipe encarregada de procurar armas de destruição em massa (ADM) durante a invasão.
     Durante a ocupação liderada pelos EUA em Bagdá, em 2003, o primeiro subtenente Roy Miller (Damon) e sua equipe foram enviados para encontrar armas de destruição em massa, que acredita-se estarem armazenadas no deserto iraquiano.  Mas, indo de um lugar cheio de armadilhas e trincheiras a outro, os homens que buscam agentes químicos mortais esbarram em uma farsa que subverte o propósito da missão. Agora Miller precisa vasculhar os serviços secreto e de inteligência escondidos em terra estrangeira para encontrar respostas que ora acabarão com um regime nocivo ora propagarão uma guerra em uma região instável. Nesse momento delicado e nesse lugar inflamável, ele descobre que a arma mais ilusória de todas é a verdade.
Direção: Paul Greengrass
Duração: 105 min.
Ano: 2010
Áudio: Português

Jogo de Poder
     O filme foca em duas histórias (Baseado nas memórias de Valerie Plame). Uma é o casamento entre Joe Wilson (Sean Penn) e Valerie Plame (Naomi Watts). Ele é um ex-embaixador do governo. Ela é uma agente secreta trabalhando para a CIA. Wilson escreve um relatório para a agência (onde ela trabalha), onde atesta ser impossível Niger ter importado urânio para o Iraque para poderem construir uma bomba nuclear. Mas como o governo fazia questão da invasão, seu relatório foi forjado para parecer que ele falou o contrário e a invasão aconteceu. Para expor a fraude, Wilson escreve um artigo para o jornal, New York Times, dizendo que o relatório apresentado é uma mentira. Em contrapartida, o governo vaza a informação que sua esposa é uma agente. O que transforma a vida dos dois em um inferno.
     A outra história é sobre os bastidores do que aconteceu para que chegassem a decisão de invadir o Iraque. Não apenas por causa do relatório de Wilson, mas também por causa de vários outros fatos apresentado, fica claro que a CIA sabia que o Iraque não tinha armas de destruição em massa. Além disso, a Casa Branca também sabia e tudo foi ignorado para justificar a invasão.
     O que mais impressiona é a coragem com que o filme foi feito. Não há nomes fictícios. Plame, Wilson e vários outros agentes aparecem descritos com seus nomes reais. Nenhum deles deve ter ficado particularmente feliz de ser retratado como um falso ou mesmo traidor, mas está tudo lá. Inclusive há uma cena em que o próprio Cheney (vice-presidente de George W. Bush) aparece pedindo para falsificar documentos.
Direção: Doug Liman
Duração: 107 min.
Ano: 2010
Áudio: Português

4 comentários:

  1. Belíssimo trabalho irmão!!!! Que o Espírito Criador te abençoe por este trabalho!
    Abraço,
    lau

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  2. Dileto irmão muito obrigado. Sua atenção e carinho são preciosos.

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  3. fala tonhão! como anda a vida, tudo certo? sempre estou recebendo as atualizações do seu blog por email, mas confesso que raramente paro pra dar uma olhada com a calma e a paciência que tudo que tá aqui merece. maravilha ver aqui a lembrança deste outro 11 de setembro, as vezes, propositadamente, um pouco esquecido.

    nao sei se vc vai se lembrar, é o roger que tá falando, me formei em 2009, junto com o mário, japonês..., mas é isso...
    um abraço firme, tonhão!
    até...

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