“E agora que vocês viram no que a coisa deu, jamais esqueçam como foi que tudo começou” (Bertolt Brecht)

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Família de Jango move ação contra Estados Unidos

Justiça brasileira tenta evitar que Washington responda judicialmente pela “reparação civil” dos danos decorrentes do golpe de 1964.
      Quando faltam menos de um ano e meio para que o golpe civil militar de abril de 64 complete 50 anos, a Justiça brasileira está para decidir uma ação da família do presidente deposto João Goulart, co­nhecido como Jango, que poderá resultar na co­locação dos Estados Unidos no banco dos réus. 0 tema é complexo e se arrasta desde 2002 nas mais variadas instâncias da Justiça e foi iniciada pelo ad­vogado José Roberto Rutkoski e agora está a car­go de Trajano Ribeiro e Daniel Renout da Cunha.
     Para se entender melhor os meandros da ação, é necessário que os interessados conheçam os porme­nores de uma linguagem jurídica complexa em que se destacam termos como “atos de gestão e de im­pério” por parte do governo estadunidense.
     A história da ação começa em 2002, depois de uma entrevista do ex-embaixador Lincoln Gordon, ao lançar em São Paulo e no Rio de Janei­ro o seu livro Brasil Segunda Chance: A Cami­nho do Primeiro Mundo, admitindo o patrocínio oculto da quebra da ordem constitucional me­diante exemplos como o fato de que a CIA dis­pôs 5 milhões de dólares, a partir de 1962, com o financiamento de candidatos ao Congresso que desfraldassem a bandeira do anticomunismo e combatessem também o nacionalismo.
     Era o tempo do Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD) e do Instituto de Pesqui­sas e Estudos Sociais (IPES), que tinha como um dos principais coordenadores o então Coro­nel Golbery do Couto e Silva, um dos principais mentores do golpe de 64.
     Com esta admissão, os filhos de Jango, João Vicente e Denise Goulart, bem como a viúva, Ma­ria Tereza, tomaram a iniciativa de processar pela Justiça brasileira o Estado norte-americano como um dos responsáveis pelo golpe que afastou do poder o presidente da República.

Soberania Nacional
     Inicialmente, segundo explicou João Vicente, o objetivo da ação não visava propriamente indeniza­ção, apenas uma ação afirmativa. O pedido sempre foi de indenização, mas não tinha nenhum valor fi­xado porque era uma reação política e de defesa da soberania, mas a Justiça, mais precisamente a 10a Vara Federal do Rio de Janeiro, exigiu que fosse fixado o valor das perdas que a família teve em decorrência do afastamento forçado de Jango da Presidência e posteriormente o exílio no Uruguai.
     Foi realizada uma perícia para apurar o valor da evolução patrimonial. Com base na declaração do Im­posto de Renda de 1963 do presidente deposto, a qual foi somada uma quantia referente aos danos mo­rais e o valor da repara­ção, acabou sendo estipu­lada em cerca de 4 bilhões de reais.
     A 10a Vara Federal jul­gou extinto o feito com fundamento na impossi­bilidade jurídica do pedi­do com base na imunida­de absoluta de jurisdição do Estado estrangeiro cujo recurso acabou sendo en­caminhado para o Superior Tribunal de Justiça (STJ), onde, apesar das sucessi­vas negativas da maioria dos Ministros, os advoga­dos ainda tentam colocar o Estado norte-americano no banco dos réus.
     No terreno jurídico, segue sendo travada uma batalha complexa e que para entendê-la é necessá­rio também analisar os meandros da política exter­na estadunidense atual e do período da Guerra Fria.
     O financiamento pela CIA da campanha para a derrubada de Jango, que não se limitou na ver­dade aos cofres do IBAD ou do IPES, foi inspira­da no que aconteceu na Itália logo após o fim da II Guerra Mundial. Preocupados com a possibili­dade de uma vitória eleitoral do então poderoso eleitoralmente Partido Comunista Italiano (PCI), a CIA e demais organismos do Estado norte-ame­ricano despejaram milhões de dólares para bene­ficiar, sobretudo partidos como o da Democra­cia Cristã e demais opositores do PCI. A ofensiva anticomunista deu certo e impediu a vitória dos comunistas, então agrupados unitariamente em um partido forte sob a liderança da figura legen­dária do secretário geral Palmiro Togliatti.
     Em uma reunião realizada a 30 de julho de 1962 entre o então Presidente John Kennedy e o embaixador Lincoln Gordon, o assessor presiden­cial Richard Goodwin aventou a possibilidade de que “talvez devêssemos pensar em golpe num fu­turo próximo (no Brasil)”.
     Na mesma entrevista sobre os gastos da CIA com o esquema de desestabilização do governo constitucional brasileiro, embora confirmando o que disse Goodwin, Gordon procurou mini­mizar o fato declarando que a opinião do as­sessor não foi considerada naquele momento, o que na prática não se confirma pelo teor dos documentos secretos desclassificados em 2004 pelo Departamento de Estado norte-americano.
     Segundo o próprio Lincoln Gordon, foram gas­tos pela CIA 5 milhões de dólares, o equivalente hoje a cerca de 50 milhões de dólares ou 100 milhões de reais.

Maior Temor
     Na verdade, temendo que no Brasil se consoli­dasse um governo nacionalista, Kennedy chegou a dizer que o número de comunistas no Brasil é irre­levante na cena política e que esse fato serviria ape­nas para atacar o governo de Jango.
     Kennedy temia eventuais ameaças aos interes­ses de empresas norte-americanas, sobretudo com a possibilidade, já então concreta, da aprovação da lei de remessa de lucros. Ele não pensou duas vezes em executar o que pouco tempo antes o Conselho de Segurança Nacional estadunidense sob o governo de seu antecessor, o Presidente Dwight Eisenhower, aprovou, ou seja, a resolução sobre as “covers actions” (ações encobertas) contra a ordem jurídica de outros países: “as operações deviam ser secretas e permitir que o governo pudesse negar, com foros de plausibilidade, sua participação nas mesmas”.
     Kennedy, portanto, seguindo essa prédica, não poupou esforços no sentido de que em algum mo­mento ocorresse a derrubada de Jango, o que hoje é confirmado com a leitura de uma série de docu­mentos do Departamento de Estado liberados para consulta. Lyndon Johnson, o sucessor de Kennedy, simplesmente levou adiante a política adotada pelo Presidente assassinado em novembro de 1963.
     Na petição apresentada pelos advogados da família Goulart à Justiça brasileira, é lembrado o fato de que vários embaixadores estaduniden­ses (no começo da década de 60) queixaram-se de terem sido usados para dissimular atividades de espionagem, mas a CIA sempre insistiu que a cobertura das embaixadas é essencial a seu tra­balho, porque inclusive sem a imunidade de que goza a propriedade diplomática, os códigos, arquivos e comunicações da central de inteligência estadunidense não estariam em segurança.
     Foi lembrado também que o atrito entre fun­cionários do serviço exterior e os agentes da CIA tornou-se tão agudo ao fim do governo de Dwight Eisenhower que o então presidente ex­pediu uma ordem executiva, em novembro de 1960, onde afirmava: “Os chefes de missões diplo­máticas dos Estados Unidos no exterior, como re­presentantes do Presidente e agindo em seu nome, deverão possuir e exercer, na medida em que permi­tam as leis e de acordo com as instruções que o Pre­sidente venha promulgar, a responsabilidade dire­ta pela coordenação e supervisão das atividades das várias agências que sirvam nos diferentes países”.
     E tão logo foi empossado, lembram os advoga­dos Trajano Ribeiro e Daniel Renout da Cunha, John Kennedy apressou-se em reafirmar os poderes do Departamento de Estado e dos embaixadores. Os embaixadores que eventualmente não aceitassem a determinação ou simplesmente apenas a questio­nassem foram removidos e substituídos.
     A partir de então, e sem que fossem cance­ladas até hoje as determinações, as embaixa­das estadunidenses se tomaram uma espécie de linha auxiliar da CIA.
     Os advogados da família Goulart apresenta­ram na Justiça brasileira a tese segundo a qual a intervenção norte-americana no Brasil com a li­beração de verbas aos golpistas de 64 e a presen­ça de uma esquadra naval norte-americana nas costas brasileiras para, em caso de necessidade, apoiar a ação de derrubada do Presidente brasi­leiro, foi um “ato de gestão”.
     Ou seja, o governo estadunidense (Poder Exe­cutivo) agiu sem consultar o Congresso (Poder Le­gislativo). Para entender melhor, foi uma ação di­ferente da empreendida em 2003 contra o Iraque, quando para aprovar a ação militar houve consen­timento do Senado, caracterizando-se como “ato de império”. Não vem ao caso se a decisão do Se­nado ocorreu com base na mentira segundo a qual o Iraque possuía armas de destruição em massa, o que ficou comprovado não existiram.
     No caso do golpe de 64, ao intervir da forma como interveio, o governo dos Estados Unidos, se­gundo os advogados Trajano Ribeiro e Renoult da Cunha, simplesmente violou a Constituição norte-americana ao ferir a carta de princípios da Organi­zação dos Estados Americanos (OEA), que impede a intervenção direta ou indireta de um estado es­trangeiro sobre a ordem interna de um aliado dos EUA. Um ato ilícito sob o ponto de vista da Consti­tuição norte-americana, portanto, não pode ser um ato de império.

Negativas da Justiça
      Mas a Justiça brasileira entendeu que a ação dos EUA foi um “ato de império”, inviabilizando a con­tinuação do processo contra o Estado estrangeiro em território nacional, o que em linguagem jurídica é considerado “imunidade absoluta de Jurisdição”.
     As sucessivas negativas de recursos que impe­dem de colocar no banco dos réus do Brasil os Es­tados Unidos, tanto da parte da 10a Vara Federal do Rio de Janeiro, como do STJ, inclusive a de impedir que a ação seja encaminhada para decisão do STF, colocam em dúvida se a Justiça brasileira tem mes­mo interesse em defender a soberania nacional ou se sente atemorizada com a solicitação de julgar o Estado norte-americano em território nacional.
     Reforça essa tese o fato de o Ministro do STJ, Félix Fischer ter decidido a ação sem permitir que um recurso extraordinário pudesse seguir para o STF sob a alegação de que uma petição não tinha sido apresentada em tempo hábil.
     Mas os advogados comprovaram, mediante do­cumento fornecido pelos Correios, que informaram que o documento original havia chegado no prazo ao STJ, não tendo sido juntado a tempo por falha administrativa do órgão judiciário. Isto é, o próprio STJ extraviou o documento em questão, resta saber se deliberadamente ou não. Os advogados alegam que esta questão foi ultrapassada quando o ministro João Otávio de Noronha consagrou o entendimento de que mesmo que os originais do agravo tivessem sido apresentados dentro do prazo “ratificavam-se os fundamentos da decisão que negou seguimen­to a ação rescisória”. Ação que combate o entendi­mento equivocado de que os Estados Unidos praticaram ato de Império, quando a jurisdição brasileira é competente para julgar atos de gestão.

Favorecimento
      Além disso, o que é ainda mais grave, os mi­nistros do STJ, com exceção de Nancy Andrighi e Humberto Gomes de Barros, concederam ao réu (EUA) a prerrogativa, não solicitada, por sinal, de aceitar ou não abrir mão da “imuni­dade de jurisdição”,
     Trocando em miúdos, facilitaram o lado dos Es­tados Unidos, que com a decisão fizeram a pergunta que favoreceu ao réu, dando margem à hipótese de que os ministros queriam se livrar, para eles, do fardo de julgar o mérito da ação interposta pela família de João Goulart. Pior, acabaram por declarar de ma­neira ilegal que os Estados Unidos violaram a Car­ta da OEA sem que tivesse direito de se manifestar.
     Com isso, fica reforçada a dúvida que os minis­tros do STJ pouco se importam se está em jogo ver­dadeiramente a soberania nacional.
     Em razão da dificuldade encontrada para dar se­guimento à ação, não se exclui a possibilidade de a família Goulart fazer o mesmo que fez a família de Jacobo Arbenz, o presidente deposto da Guatema­la, em 1954. Os Arbenz deram entrada, e ganharam, em ação na Justiça dos EUA apresentando o Esta­do norte-americano como um dos responsáveis pelo golpe patrocinado pela CIA. Não foi divulgado o valor que os EUA pagaram pelos danos causa­dos à família Arbenz, mas a decisão cria juris­prudência e, caso os Goulart entrem com ação, obterão resultado favorável ao pleito.
     Para João Vicente, no entanto, o ingresso da ação na Justiça brasileira é um recurso importan­te no sentido da afirmação e defesa da soberania nacional, que, no entender dele, foi aviltada com o golpe que derrubou o presidente João Goulart. João Vicente se baseia no fato de que a jurisdi­ção se exerce nos mesmos limites da soberania e o dano foi praticado em território brasileiro. Daí a competência territorial para julgar o pedido de reparação.
     A renúncia de jurisdição e competência para julgar o pedido da família Goulart, sem que os Estados Unidos tivessem solicitado formalmente a imunidade de jurisdição, é, sem dúvida, uma renúncia de soberania.
     Não se exclui também a possibilidade, segundo admitiu João Vicente Goulart, se a justiça negar totalmente a ação, de a família para o julgamento do Tribunal de Haia. “Lamentavelmente, o Brasil terá de ser réu pelo fato de a justiça negar a uma família o direito de julgar em território nacional o país responsável por uma ilegalidade que levou o país a uma longa escura noite de 21 anos”, observou João Vicente Goulart.
     Por estas e muitas outras ao longo dos anos, está na hora do Poder Judiciário brasileiro ser passado a limpo, inclusive sepultar os vícios adquiridos ao longo de 21 anos de ditadura e que continuam vigentes.
Mario Augusto Jacobskind é jornalista.

Saiba Mais – Link:
Sem resistir ao golpe, João Goulart partiu para o exílio e evitou uma luta sangrenta entre reformistas e golpistas.

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