“E agora que vocês viram no que a coisa deu, jamais esqueçam como foi que tudo começou” (Bertolt Brecht)

quinta-feira, 2 de maio de 2013

Cadê a paz?

Emboscadas, rebeliões, insurreições, batalhas e mais batalhas. Dizem que o Brasil é pacífico. Resta saber onde.
     A última vez que terras brasileiras serviram de palco para uma ação militar contra estrangeiros foi no século XIX, na Guerra do Paraguai (1864-1870). Esta afirmação pode dar a entender que o Brasil não é muito de briga, principalmente se for comparado a países que vivem em estado de alerta, como Iraque e Estados Unidos. Mas, contrariando o senso comum, esses dados não são suficientes para se reconhecer o país como pacífico. Em matéria de paz, a língua portuguesa pode provar que há uma série de termos entranhados na História do Brasil cujos significados chegam muito perto de uma guerra.
     Dependendo do contexto, alguns vocábulos podem ser considerados sinônimos – rebelião, motim, sublevação, insurreição e sedição. Mas o pesquisador português Caetano M. de F. Albuquerque já alertava, em 1911, para as diferenças de algumas expressões em seu
Diccionário Téchnico Militar de terra: “Entre batalha e combate há grande diferença: aquela envolve ao mesmo tempo uma ideia abstrata e concreta, é um ato de concepção que pode não ter completa execução; o combate é o fato material e a execução do ato de concepção”. Apesar destes significados, no mesmo verbete o autor define “batalha” como um “combate geral entre dois exércitos ou qualquer que seja sua melhor definição, não resta dúvida de que é a mais solene e grandiosa de todas as ações de guerra, a pedra de toque da capacidade dos vários comandos superiores, e Bonaparte dizia que nada desejava tanto como uma grande batalha”.
     Com nuances de significados aqui e ali – “insurreição”, por exemplo, é mais apropriado para o caso de levante contra a autoridade, e “rebelião” pode ser uma resistência à mão armada às ordens superiores –, o fato é que os brasileiros esbarram nestas palavras durante todo o período escolar. Os episódios conflituosos são tantos que está para ser lançada a quarta edição do
Dicionário das batalhas brasileiras: Dos conflitos com indígenas aos choques da reforma agrária (1996), de Hernâni Donato. O escritor, que se dedica ao tema desde a adolescência, está preparando quatrocentos novos verbetes. Quando começou a elaborar o dicionário, há cerca de 60 anos, Donato não tinha ideia de que conseguiria listar mais de dois mil episódios históricos. É que, para ele, batalhas não precisam ser aquelas que envolvem milhares de homens. “Considerando a ‘pequenez’ do evento, sempre que algumas pessoas foram à luta em defesa de uma ideia, houve uma batalha. Os conflitos agrários, por exemplo, geralmente têm poucas vítimas”, exemplifica.
     Dentre esses novos verbetes, alguns são do período da invasão holandesa em Pernambuco (1630-1654). “A cada semana descubro mais um evento da guerra contra os holandeses realizado no interior das capitanias”, diz Donato, que, diante de tanto trabalho, fica indignado com uma máxima brasileira: “Infelizmente, essa pesquisa contesta a máxima que diz que o brasileiro é pacífico”.
     Mesmo sem consultar os livros, é possível perceber esta, digamos, falta de talento para se viver em paz no Brasil. A Amazônia que o diga... Até o fechamento desta edição, cinco trabalhadores rurais haviam sido assassinados em emboscadas – mais um termo violento comum em nossa história – em menos de três semanas, e os jornais estampavam reportagens que mostravam uma tendência ao agravamento da situação.
     De acordo com o Global Peace Index (Índice de Paz Mundial), o Brasil ocupa a 74ª posição num ranking de 153 países. Numa escala mundial, isto significa que somos muito mais pacíficos do que nações como a Somália, que aparece em último lugar, Iraque (152º), Israel (145º) e Afeganistão (150º), mas não estamos tão longe assim dos Estados Unidos (84º). Se a comparação for feita com os vizinhos, o Brasil não tem do que se gabar. O Uruguai, que já foi disputado a tiros de canhão, hoje é o país mais pacífico de toda a América Latina, ocupando o 21º lugar mundial. Argentina, Paraguai e Chile também nos ultrapassam com facilidade.
     Se Poliana, a personagem otimista do clássico infanto-juvenil, soubesse disso, talvez ela recuperasse um livro do escritor Oliveira Lima (1867-1928), no qual era exaltado o caráter pacífico do país, em comparação exatamente com os nossos vizinhos. Os tempos eram outros – mais precisamente 1914 – quando ele publicou o seguinte: “O Brasil imperial constituiu um modelo de liberdade e paz para a América Latina e forneceu pelo menos uma imagem real de civilização, emanada do trono, ao tempo em que as sociedades hispano-americanas se debatiam em meio à desordem e selvajaria”.
     Mas quando Oliveira Lima fez esta afirmação, o mito já estava criado havia tempo. O Grito do Ipiranga sem derramamento de sangue, escolhido como símbolo da Independência, contribuiu para esta visão, mesmo sendo seguido por uma guerra
[Ver RHBN nº 48]. A ideia de país pacífico foi fortalecida durante a Regência (1831-1840), década em que diversas rebeliões contestaram o poder central. Associar a imagem pacifista a uma fase turbulenta da História soa, no mínimo, contraditório. No entanto, o discurso da vitória da monarquia sobre liberais e separatistas era feito “em nome da paz”. Pelo menos esta foi a conclusão a que chegou o brasilianista norte-americano Henry H. Keith. Em artigo publicado em 1970 no livro Conflito e continuidade na sociedade brasileira (Civilização Brasileira), ele se refere ao período como sendo de “paz forçada”. E chama atenção para o fato de que, durante o Império, defensores do regime, como o historiador Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-1878), “arranjaram uma série impressionante de argumentos contra a violência rebelde e em defesa da conservadora e disciplinada tradição da monarquia”.
     O mito estava criado, atravessando o Império e chegando à República. E a tal “paz forçada” continuou sendo um recurso usado pelos governos. Em nome dela foram abafados movimentos como a Revolução Federalista (1893-1895), no Sul; Canudos (1896-1987), na Bahia; a Revolta da Chibata (1910), no Rio de Janeiro, e a Revolta do Contestado (1912-1916), no Paraná e em Santa Catarina, entre tantos outros. Já durante as ditaduras, a impressão que se tem é de que a força tinha muito mais importância do que a paz, já que tortura e assassinato eram práticas comuns.
     Keith também aponta que o historiador Sérgio Buarque de Holanda reforçou o mito da não violência quando explicou a boa índole própria do brasileiro, a teoria do “homem cordial”. Mas parece que o brasilianista não entendeu o que Buarque de Holanda desenvolveu em seu Raízes do Brasil (1936): “Nossa forma ordinária de convívio social é, no fundo, justamente o contrário da polidez”, escreveu o historiador, que ainda definiu essa mesma polidez como “um disfarce que permitirá a cada qual preservar intatas sua sensibilidade e suas emoções”. Portanto, a cordialidade não tem relação com a ideia de paz, e sim com o tratamento emocional. Por isso, nada impede que o “homem cordial” seja violento.
     Apesar de não ser polido, o Brasil tem bastante experiência em diplomacia, talvez tanta quanto tem em conflitos. A conciliação volta e meia aparece na pauta das relações exteriores do governo: em 1998, o Brasil foi um dos mediadores do acordo de paz entre Equador e Peru, envolvidos em conflitos em suas fronteiras havia décadas; em 2009, o país ofereceu apoio para a construção de um processo de paz entre israelenses e palestinos.
     Entra governo, sai governo, a tentativa de se buscar a paz permanece, pelo menos no discurso. Recentemente, na comemoração do Dia do Exército (19 de abril), a presidente Dilma Rousseff lembrou esta particularidade do país, afirmando que se trata de “um país de vocação pacífica e democrática” – atenção: ela não disse “país pacífico”. Tomara que ela esteja certa, mas, por via das dúvidas, o escritor Hernâni Donato já está treinando seu filho e seu neto para darem continuidade ao seu Dicionário de Batalhas Brasileiras.


Saiba Mais: Documentário
   Lutas.doc faz uma reflexão profunda sobre a história da sociedade brasileira e o papel da violência na formação do povo. Dirigido por Luiz Bolognesi e Daniel Augusto, o documentário tem um ritmo dinâmico e utiliza recursos de animação, trechos de filmes, informação, entrevistas e análise. Os cinco episódios combinam densidade de reflexão com linguagem acessível, uma atração especial para o público jovem.
Grandes pensadores brasileiros, personalidades da política e da cultura do país, além de outros cidadãos, abordam várias facetas da violência no Brasil. Os depoimentos são intercalados por desenho animado. Essa animação é fruto do trabalho diário de uma equipe de 60 profissionais e levou três anos para ser produzido. Com um olhar crítico e ousado, duas dezenas de entrevistados passam em revista a história da sociedade brasileira. Entre eles, os ex-presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Fernando Henrique Cardoso, a ex-senadora Marina Silva, o escritor Ferréz, índios Guarani-Kaiowá, o jornalista Gilberto Dimenstein, o líder do MST João Pedro Stédile, os historiadores John Monteiro, Laura de Mello e Souza, Pedro Puntoni e Leandro Karnal, o sociólogo Luis Mir e a filósofa Márcia Tiburi, o psicanalista Contardo Calligaris, Soninha Francine; a professora de filosofia Olgária Matos, a professora Esther Hamburger, jornalista e ex-moradora de rua Esmeralda Oritiza, professora de comunicação Esther Hamburger, o pensador José Júnior, do AffroReggae.
     Os diretores da série propõem um grande debate e tentam contar a história do Brasil que não se aprende nas escolas.
Direção: Luiz Bolognesi e Daniel Augusto
Ano: 2010
Áudio: Português
Duração: +- 25 minutos/cada Episódio
Ep.01 - "Guerra sem fim", com demolidora argumentação, desmonta-se a imagem do Brasil como sociedade pacífica e do brasileiro como gentil por natureza. Mostra a história da violência no Brasil, a presença da luta desde antes da chegada dos colonizadores, ou seja, é uma constante na história nacional. Mesmo antes da chegada dos europeus, as nações indígenas tinham a guerra no centro de suas culturas. São enfocados conflitos pouco conhecidos, massacres, e revistos fatos históricos à luz de um olhar crítico, que questiona a história oficial com argumentos e insights.

Ep. 02 - "Recursos humanos", volta-se para a escravidão e revela as cicatrizes sociais com suas tensões, ambiguidades e a dificuldade de passar das palavras a atos de transformação. Enfoca como era a vida dos escravos no Brasil e como eles foram tratados pelas outras classes sociais. Os escravos foram libertados no país em 1888. Entretanto, "Nunca houve uma preparação intelectual dos escravos no Brasil, como aconteceu nos Estados Unidos com a Guerra Civil", observa o historiador Eduardo Gianetti. "Levamos mais de um século para integrar escravos na força de trabalho, mas não devemos ser orgulhosos, devemos ter vergonha."

Ep. 03 - "Fábrica de verdades", mostra como a mídia, especialmente a televisão, nega a violência e a brutalidade das relações sociais. "Se você imagina que são as novelas que fazem a educação do brasileiro... É uma inversão de princípio e de realidade. Impressionante", diz a professora de filosofia, Olgária Matos. "Estamos em um país em que as pessoas não são alfabetizadas", diz o escritor Ferrez. Da mesma opinião, o jornalista Gilberto Dimenstein constata: “Em São Paulo, se você pega as pessoas formadas no ensino médio, 5% apenas têm conhecimento adequado para ler e escrever. Lamento, eu não consigo ver violência maior do que uma pessoa chegar ao final da sua adolescência e não saber ler nem escrever. Não consigo ver quantas violências são maiores do que essa. Mas ninguém liga. E não causa comoção, não causa nenhum escândalo, não causa uma indignação nacional".

Ep. 04 - "Heroína sem estátua", investiga a discriminação silenciosa das mulheres. A luta das mulheres pela igualdade de direitos na sociedade brasileira. Na avaliação do historiador Pedro Puntoni, toda revolução histórica é marcada por conflitos e, no caso da questão feminina, o papel da rebelião foi fundamental nesse processo. "A rebeldia transforma a história", analisa. Ele conclui que, na política, o brasileiro ainda é muito conservador e a visão machista perdura nas grandes decisões. Mesmo com todo o avanço das mulheres, a série constata que apenas 9% das prefeituras brasileiras são ocupadas por elas. Outro índice que ainda é um diferencial são os salários: 40% menor do que os dos homens que ocupam a mesma função. Uma das representantes da mulher na política, a ex-senadora Marina Silva reconhece o rápido aprendizado das mulheres com os homens. E garante que "se os homens não aprenderem com elas terão um grande prejuízo".

Ep. 05 - "O que vem por aí", é uma conversa sobre o futuro polarizada entre quem acha que o Brasil está em guerra civil e quem acredita que o crescimento econômico e político pode mudar a situação.

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