“E agora que vocês viram no que a coisa deu, jamais esqueçam como foi que tudo começou” (Bertolt Brecht)

terça-feira, 18 de junho de 2013

Breve história da baderna

Desde Aristóteles se sugere que o Estado existe para o bem da população, mas raras são as vezes que os anseios do povo foram atendidos, além dos momentos de confronto, manifestações e protestos.
And now you do what they told ya…
R.A.T.M
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     A ideia de que o Estado existe para o bem da sociedade é tão antiga quanto infantil.
     Aristóteles, talvez o mais importante filósofo político da Antiguidade (seguramente o mais famoso), expôs ainda no século IV a.C. o princípio segundo o qual o que conhecemos como “Estado” (ele chamava de πολις, “cidade”) existe para garantir a felicidade de um grupo – a coisa mudava de figura quando o governo se corrompia. É bom lembrar, entretanto, que Aristóteles se empenhou em construir sistemas explicativos muito gerais, “filosóficos” no melhor sentido do termo. Ele estava muito mais preocupado em entender como as coisas funcionavam do que em dar conta da real constituição, por exemplo, dos regimes políticos - não custa lembrar que cultivava um certo desprezo pela História.
     Muito diferente, por exemplo, do seu contemporâneo Platão. Este outro grego, pelo menos no que vemos em seu relato em "A república" sobre os fatos que levaram à condenação de Sócrates, seu mestre, sabia muito bem que o Estado não era necessariamente guardião de virtudes. Podia ser, aliás, o exato oposto.
     O fato é que a ideia exposta por Aristóteles acabou caindo nas graças dos líderes políticos e religiosos ocidentais ao longo de toda a Idade Média. Era muito comum, quando se tentava explicar a origem do poder político dos governantes (por si só eticamente inexplicável), dizer que este, além de dado por Deus, existia para o bem dos súditos. Toda teoria política ao longo de mil anos foi uma variação deste tema. Ora pendendo mais para o lado de Deus, que só poderia querer o bem da sua criação, ora para um suposto acordo feito entre homens em um passado remoto no qual decidiam pela fundação de um Estado para a garantia da felicidade e da segurança de todos. Registre-se que nunca houve prova de que este suposto acordo ancestral tenha acontecido, mesmo que uma única vez. Trata-se evidentemente da mais eficaz mitologia política da qual se tem notícia e que não está totalmente fora de uso.
      Boa parte das teses mais radicais ao longo do período posterior, sobretudo entre os séculos XVII e XIX, recorrem a esta ênfase humana do mito do Estado – e podemos colocar neste mesmo saco todos os livres-pensadores franceses, os constitucionalistas ingleses, os “pais fundadores” norte-americanos, os filósofos iluministas, os revolucionários de 1789, os liberais e democratas do século XIX, os comunistas do século XX. A naturalização da necessidade da existência do Estado ficou mais associada ao nome do inglês Thomas Hobbes (1588-1679), porém esta talvez tenha sido apenas uma das vozes mais perceptíveis em um coral muito bem afinado.
     Mas é claro que nem todos concordavam com isso. Maquiavel, há exatos quinhentos anos, em 1513, expunha de maneira crua em "O príncipe" qual era o objetivo do Estado. Nada de felicidade da comunidade. Nada de segurança dos cidadãos. O Estado existia para perpetuar a si próprio. A verdade era tão evidente e tão desconcertante que o escritor florentino foi condenado unanimemente: suas obras foram consideradas heréticas por católicos e protestantes (em uma época na qual estas facções não se entendiam sobre nada), liberais e comunistas. Ser chamado de “maquiavélico” ainda é ofensivo. Entretanto, Maquiavel não estava apenas dando conselhos a um governante para conquistar o governo e manter o poder: ele estava mostrando que os governantes bem-sucedidos e as formações estatais que tiveram alguma perenidade (as cidades-estados italianas da sua época viviam grande instabilidade) gastavam todas as suas energias na autopreservação, independente do julgamento das suas ações.
     Outros dois que perceberam de maneira bastante clara – ou tiveram a audácia de colocar isso em letra impressa – esta natureza das formações estatais foram Marx e Engels (em cujos nomes cometeram-se e cometem-se, injustamente, muitas atrocidades, não apenas físicas, mas intelectuais). O primeiro, observando o funcionamento corriqueiro do parlamento da Renânia, ainda na década de 1840, percebeu que o Estado funciona basicamente para proteger aqueles que controlam o próprio Estado; Engels, 40 anos depois, em seu "A origem da família, da propriedade privada e do Estado" (1884), mesmo com todas as críticas possíveis ao flagrante evolucionismo (aliás, comum na época) e, talvez, sua incorporação de tese já anunciada por John Locke (1632-1704), também vai expor o funcionamento do Estado em termos de uma proteção muito seletiva de grupos sociais: os que controlam o Estado.
      O fato inelutável, entretanto, é que não há registro de uma formação estatal que tenha como traço constitutivo essencial o bem do conjunto da população – ao menos não de uma forma voluntária, mesmo que os seus instituidores digam (e até acreditem) estar movidos pelas melhores intenções. Desde que o Estado realmente se impôs no Ocidente como forma de organização social, em fins do século XV, ele tem sido pouco mais (essencialmente) do que uma forma de privatização do controle sobre uma parcela considerável de gente (súditos ou cidadãos).
     Tomando-se como exemplo os governos monárquicos hereditários, o que temos entre os séculos XV e XVIII é uma tentativa de manutenção de dinastias – e o largo recurso a exércitos constituídos por mercenários estrangeiros dá uma boa medida das intenções dos governantes durante toda esta época: manter a “ordem interna”, isto é, manter afastada a possibilidade de mudança na direção do aparato estatal que beneficia uma casa real e o seu sustentáculo político-militar, a aristocracia, bem como a instituição que deve lhe dar sustentação ideológica, o clero.
     Nas formas constitucionais de governo, sejam repúblicas ou monarquias, o que se vê no mesmo período é apenas uma variação de intensidade do mesmo princípio (e talvez esteja aí uma chave para compreender mudanças ocorridas posteriormente dentro de sociedades que conheceram formações estatais). Veja-se, por exemplo, o caso inglês. Ao longo do século XVI, boa parte da história política da pátria de Henrique VIII (e mesmo os seus desdobramentos na sociedade e na cultura) pode ser interpretada como uma luta entre grupos privados pelo controle do aparato estatal. Disputas dinásticas que assumiam feição religiosa, como deveria ocorrer em um século no qual as legitimidades de governo deviam dar conta da queda de braço que acontecia dos dois lados do Canal da Mancha para saber quem era o real porta-voz de Deus (parte considerável da Europa já não se reportava mais ao Trono de São Pedro).
     As guerras internas e mesmo os conflitos entre as diversas paragens britânicas não aconteciam para trazer felicidade ou segurança à maior parte da população. Acontece que a coisa mudou no século XVII. Entre as décadas de 1640 e 1660, o grupo que controlava o Estado (a dinastia Stuart e a alta nobreza) foi confrontado por setores que haviam se tornado economicamente relevantes mas estavam politicamente excluídos: a Revolução Inglesa uniu os chamados “comuns” contra os grupos encastelados (literalmente) no governo, iniciaram uma guerra civil, combateram os cleros católico e anglicano, decapitaram um rei e instituíram um governo constitucional (e, por algum tempo, republicano).
     Quando a poeira desta grossíssima baderna baixou, o governo instaurado em 1685 por Jaime II tentou recuar com as conquistas dos antigos revoltosos: o Parlamento convidou um nobre holandês, Guilherme de Orange, para assumir o trono e colocou Jaime II para correr. A partir daí, o Estado inglês é obrigado a tratar seus súditos de outra maneira. Não que ele funcione naturalmente desta forma: se uma parte considerável daquela população se sente especialmente violentada pelo Estado, ela o confronta.
     Na França, um século depois, as autoridades tradicionais também se veem acuadas por uma parcela significativa da sociedade. Os governos revolucionários que se sucedem a partir de julho de 1789, inclusive decapitando um rei e uma rainha, precisam dar conta destas demandas que passam a chegar diretamente das ruas.
     O governo instaurado, evidentemente, não chama a população para “conversar pacificamente”, uma vez que aquele não reconhece nesta um interlocutor político; o governador do Rio de Janeiro, recentemente, afirmou que a população não age politicamente de forma “espontânea”, o que é apenas uma atualização da negação que o Estado dispensa desde sempre à maior parte da sociedade no que diz respeito à sua capacidade “política”. A única ação “política” que o Estado pode reconhecer na sociedade, em nosso caso, é o voto.
     É claro que o Estado francês, do Terror ao Império – e talvez em 1848 e mesmo depois –, não estava essencialmente montado para fazer a felicidade e a segurança dos cidadãos franceses, baderneiros especialmente violentos. Ao contrário: suas armas se voltaram, na maioria das vezes, contra os franceses que se colocaram contra os rumos do Estado (muitos cidadãos franceses foram guilhotinados e fuzilados por carrascos e soldados franceses).
     Se observarmos do século XXI para o passado, entretanto, vamos ver que os governos franceses que se instalaram no século XX tiveram um cuidado maior quando precisam se preservar da população. Os movimentos liberais ou conservadores daquela sociedade ao longo dos últimos cem anos (e mesmo nos últimos meses) deixam bem claro que aquele Estado não pode agir muito explicitamente em contrariedade da vontade da maior parte da população: o povo francês consegue constranger o Estado quando isto é do seu interesse.
      No caso norte-americano, em geral considerado um exemplo de democracia para o mundo (na maior parte das vezes, por eles próprios), a sociedade constrange constantemente o Estado – obviamente os motivos foram diversos, mas é bem significativo de uma cultura política que quatro presidentes tenham sido assassinados no cargo (Lincoln em 1865, Garfield em 1881, McKinley em 1901 e Kennedy em 1963).
     O Estado norte-americano, por seu turno, dá seguidas mostras de que não confia em sua própria população, não importando significativamente se o controle está entre republicanos ou democratas. Recentemente, a imprensa noticiou a existência de um complexo programa de espionagem cibernética mantido pela Agência de Segurança Nacional daquele país, uma notável continuidade entre administrações supostamente opostas, unidas, entretanto, pelo interesse maior: a preservação do Estado, mesmo que isto custe a diminuição das liberdades da sociedade (não apenas americana).
     O que acontece, neste e em outros casos, é que a sociedade norte-americana, para o bem ou para o mal, amedronta cotidianamente quem a está governando – o político americano típico precisa fingir que é o próprio povo – andando de metrô ou de bicicleta – ou deve estar muito explicitamente separado da sociedade – seguranças, carros blindados, esquemas especiais. Em todo caso, por via das dúvidas, ele precisa parecer agir a favor da sociedade (políticos norte-americanos são excelentes pedintes de desculpas e, falando de forma hipotética, é muito improvável que o mais valente destes desfira um soco na cara de um ofensor).
     Não é preciso ir longe, entretanto, para perceber que a sociedade só consegue segurança e felicidade quando confronta o Estado e o próprio arcabouço legal (as normas criadas pelo próprio Estado para protegê-lo). Temos aqui alguns exemplos bem básicos: a própria existência da sociedade e do Estado brasileiros de maneira autônoma de Portugal só existe por conta do constrangimento que a sociedade (ou parte dela) impôs ao antigo Estado lusitano e às suas leis. A independência do Brasil só se deu porque um determinado segmento social descumpriu as leis portuguesas, declarou a emancipação em 1822 e fez uma guerra que se arrastou até 1825.
     A escravidão só teve fim oficial (isto é, reconhecido pelo Estado brasileiro) em 1888 porque escravos e pessoas livres que eram contra o cativeiro descumpriram o direito à propriedade privada garantido pela Constituição de 1824 – com desobediência pacífica mas também com uma grande dose de violência (escravos e abolicionistas eram, do ponto de vista da ordenação jurídica do Estado brasileiro, baderneiros).
     Ao longo do século XX, o direito ao voto, o direito à educação pública, o direito à aposentadoria, o direito à jornada de trabalho de oito horas diárias, o direito ao salário mínimo... Nada disso foi dado pelo Estado para a felicidade e a segurança da população: tudo foi resultado do constrangimento que a própria população impôs ao Estado (baderna, portanto).
     Na última semana, horas depois da Revolta da Salada, cujo mote principal foram os altos preços e os péssimos serviços do transporte público, as três esferas do Estado brasileiro se manifestaram. O prefeito de São Paulo, o governador (estes dois estavam em Paris) e o ministro da Justiça foram unânimes em condenar o “vandalismo” e a “baderna” dos manifestantes. Não poderia ser diferente: independente da orientação ideológica ou partidária dos mesmos (o ministro e o prefeito são do mesmo partido, o governador é da oposição – o que é uma mera formalidade estético-eleitoral, o que ficou bem evidente ultimamente com o fato de que o vice-governador de São Paulo é ministro do governo federal), os três são representantes de grupos que controlam estas esferas do Estado, e suas ações visam unicamente a manutenção do próprio Estado e dos seus lugares no mesmo.
     É muito comum, entretanto, por parte destes gestores do Estado, que se diga que vivemos em um “regime democrático” (trata-se de uma atualização daquele mito político do qual falamos, segundo o qual o Estado é resultado de um acordo entre os homens e que ele existe em benefício da maioria). Não é preciso demonstrar que se trata de uma falácia. Mas vou fazer assim mesmo: basta que se mencione a existência de tropas de choque. Qual é a função desta divisão da força policial? Ora, é manter a “ordem interna”, isto é, a segurança do próprio Estado. Por isso seu nome não é “tropa de manutenção da segurança e da felicidade dos cidadãos”. É choque mesmo, para confrontar a sociedade quando uma parcela desta entrar em desacordo físico com a direção do Estado (a que damos o nome de “governo”).
     Outro cacoete discursivo dos governantes demonstra qual é o fim essencial do Estado. É muito comum que os seus porta-vozes digam, no caso das atuações em centros urbanos durante manifestações, que o objetivo destas forças policiais é “garantir o direito de ir e vir do cidadão”. Acontece que em todos os outros dias o Estado não se mobiliza para garantir o direito de ir e vir do cidadão (para não mencionar outros, bem mais simples), que gasta horas no trânsito, da forma mais desconfortável possível e pagando preços altíssimos em deslocamentos entre a casa e o trabalho. (Os gestores do Estado, por outro lado, não estão expostos a estas mesmas condições, como se sabe, assim como se sabe quem é que paga por isso.)
     Também se argumenta que estas mesmas tropas utilizam “armas não-letais”. Acontece que não existem armas não letais. Há armas, simplesmente – pode-se matar alguém com um travesseiro de penas de ganso ou com água filtrada, desde que usados corretamente. Também é bom ter em conta que dispositivos que podem facilmente cegar pessoas ou matar por intoxicação ou sufocação não deveriam ser designados por termos eufemísticos. Além disso, estas armas são utilizadas pelo Estado contra a parcela descontente da sociedade para garantir a sua permanência no controle do mesmo, sobretudo quando o que está em jogo é a garantia de renda por parte daqueles que sustentam política e economicamente aqueles que o estão gerindo (não se pode supor que os valores gastos por partidos políticos nas campanhas eleitorais serão compensados por qualquer verba que seja privatizada de forma contabilizada).
     Enfim, é provável que se ouça de representantes de partidos políticos (sejam governistas ou oposicionistas) que há disputas de projetos de Estado, que uns projetos são opressores enquanto outros são democráticos. E agora há uma miríade de tópicos de discurso como “orçamento participativo”, “conselho da cidade”, “transparência” e tantos outros, que servem justamente como intermediários ideológicos entre as populações e os gestores estatais, justamente para amortecer os conflitos e o potencial de constrangimento.
     Trata-se, entretanto, de uma falsidade: quem entra na gerência do Estado (em nosso ordenamento jurídico, isso acontece através destas instituições chamadas “partidos”) atua necessariamente para a sua manutenção, mesmo que isto seja feito contra o conjunto da sociedade. O militante partidário que disser o contrário estará mentindo – mesmo que primeiramente para si próprio. Além disso, a ideia segundo a qual pode-se aderir a um ou outro “partido” com o fito de se escolher um “mal menor” é ofensiva à inteligência e à dignidade humana.
     O objetivo do Estado não é a sua segurança e a sua felicidade: é que você obedeça e pague impostos. O governo em prol da sociedade só existe quando a sociedade está mobilizada contra o Estado. Para criar e garantir direitos, a sociedade precisa constranger permanentemente e de todas as formas possíveis quem é o governo. Pelo menos é o que tem acontecido nos últimos 600 anos.

Em tempo 1: Houve uma experiência no século XX na qual o Estado dizia ser (e acreditava ser) a manifestação total da vontade da sociedade, assim como a maior parte da sociedade acreditava (com uma boa dose de medo, é verdade) que o Estado era a manifestação suprema de todas as suas vontades. O nome desta experiência é “nazismo”.
Em tempo 2: Os vândalos eram um povo germânico que vivia no norte da Europa e foi um dos invasores do Império Romano no século V. Fugiam da fome e da guerra, e acabaram entrando em território imperial. Em pouco tempo, chegaram às margens do Mediterrâneo e atravessaram para o norte da África. Eles eram cristãos, mas de uma dissidência chamada de "arianismo", considerada uma heresia pela Igreja romana - motivo pelo qual eram amaldiçoados, perseguidos e combatidos. Quando invadiram a África, elegeram como alvos preferenciais as igrejas e os mosteiros cristãos romanos - "vandalismo" passou a significar, no vocabulário de origem latina, a destruição daquilo que é respeitável por sua beleza e por sua antiguidade. Os vândalos, bem como os outros povos germânicos, acabaram triunfando sobre o Império Romano. Não porque eram mais fortes: a população romana, sobrecarregada, faminta e violentada com a opressão do Estado e da Igreja, aderiu aos recém-chegados. A primeira grande transformação na sociedade ocidental em nossa era se deu naquele momento.

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