“E agora que vocês viram no que a coisa deu, jamais esqueçam como foi que tudo começou” (Bertolt Brecht)

quinta-feira, 13 de junho de 2013

Especial - Abolição da Escravatura 13-05-1888

     O texto é curto e direto: “Fica abolida a escravidão no Brasil. Revogam-se as disposições em contrário”. Onze palavras que mudariam o nosso futuro. Com o fim do cativeiro, o país entraria em uma nova fase, próspera e igualitária. Festa, júbilo, comoção coletiva nas ruas.
     Cento e vinte cinco anos depois, a promessa sugerida naquele belo pedaço de papel soa envelhecida como o próprio. Em que ponto do caminho as coisas deram errado? Provavelmente, antes mesmo daquele 13 de maio de 1888.
     As analises dos especialistas revelam o “jeitinho brasileiro” de acabar com a escravidão: do ponto de vista religioso, nos separamos do destino norte-americano. Na esfera política, a autoria do feito foi disputada por republicanos e monarquistas. A princesa Isabel virou santa, a reforma agrária foi engavetada e o papel dos próprios negros, ignorado.
     Abaixo, especialistas discutem o processo que levou o Brasil à Abolição da Escravatura e suas consequências.

Em nome de Deus
José Murilo de Carvalho
     Foi muito diferente o papel exercido pela  religião e pelas igrejas nos movimentos abolicionistas dos  Estados Unidos e do Brasil.
     O mais forte componente dos abolicionismos britânico e norte-americano foi justamente a convicção religiosa. Os quakers foram pioneiros na luta contra a escravidão na Grã-Bretanha. Esse grupo religioso puritano, conhecido como Sociedade dos Amigos, engajou-se na luta desde o final do século XVII. Apesar de não haver condenação da escravidão na Bíblia, eles decidiram que sua prática era incompatível com o princípio da igualdade de todos os homens perante Deus. Aliados a outros religiosos, organizaram-se em sociedades abolicionistas, mobilizaram a opinião pública e pressionaram o Parlamento para aprovar medidas contra a escravidão. Em 1807, esses militantes conseguiram sua primeira grande vitória quando o Parlamento decretou o fim do tráfico de escravos.
     A atuação dos quakers estendeu-se aos Estados Unidos, onde a luta foi muito mais dura, pois lá a escravidão estava dentro do país. Mesmo assim, na década de 1830 já funcionavam  várias sociedades abolicionistas, todas movidas por valores  puritanos e organizadas por quakers, metodistas e batistas.  A mais importante foi a American Anti-Slavery Society, criada em 1833.
     No Brasil, nem o pensamento abolicionista se baseou na religião, nem a Igreja Católica se empenhou na causa. Pelo contrário, padres e ordens religiosas eram coniventes e cúmplices da escravidão. A Bíblia, argumentava-se, não proibia a escravidão e, afinal, o que importava era a liberdade da alma livre do pecado, e não a liberdade civil. Além disso, padres eram empregados do Estado, cujos interesses tinham dificuldade em contrariar. Nosso abolicionismo baseou-se antes em razões políticas e humanistas.
     Esse contraste ajuda a entender por que, nos Estados Unidos, a abolição foi seguida de forte ação a favor dos ex-escravos, sobretudo nos campos da educação, dos direitos políticos e do acesso à propriedade da terra. Entre nós, nada foi feito, nem pelo  Estado, nem pela Igreja, nem pelos particulares.
José Murilo de Carvalho é professor titular da UFRJ e autor de Dom Pedro II: Ser ou não ser (São Paulo: Companhia das Letras, 2007).

Ouçam Salustiano
Wlamyra R. de Albuquerque
     Em 1889, um grupo de libertos da região de Vassouras, no Rio de Janeiro, endereçou a Rui Barbosa uma carta na qual exigia instrução pública para seus filhos. Vivia-se um período delicado; a escravidão fora extinta havia pouco tempo e a monarquia estava em colapso. Os signatários da carta se declaravam republicanos e diziam que foram eles, os ex-escravos, e não a família real, os autores da abolição. Esta declaração de protagonismo não agradava a Rui Barbosa (1849-1923) e a outros emancipacionistas mais conservadores, para quem a abolição era um problema nacional que tinha sido resolvido pelos “cidadãos”, os “homens esclarecidos”, categorias que não incluíam escravos e libertos.
     Mas nem de longe o fim de escravidão foi algo decidido e encaminhado apenas pelos senhores brancos e doutores do Império. Desde que aqui aportaram os primeiros tumbeiros, as autoridades policiais e políticas eram sobressaltadas por fugas e insurreições escravas a comprometerem, dia após dia, os negócios, o sossego e a autoridade senhorial.
     Na segunda metade do século XIX, a relevância da rebeldia negra para a falência do escravismo ficou ainda mais evidente. A historiografia está repleta de personagens negros que tinham na abolição a sua principal causa, como Luís Gama, José do Patrocínio e Manoel Querino. Houve outros menos famosos, mas também contundentes propagandistas da liberdade negra, como um certo Salustiano.
     Ele ficou conhecido na crônica baiana como o orador do povo, graças à veemência com que discursava a favor da abolição e em apoio a José do Patrocínio sempre que se desincumbia dos seus afazeres de sapateiro. A pregação de Salustiano contrariava de tal maneira a ordem vigente que um delegado de Cachoeira, no Recôncavo baiano, chegou a solicitar ao chefe de polícia orientação para fazer “calar o dito preto”.
     Ousadia foi a tônica da atuação dos negros que lutaram contra a escravidão, inclusive às vésperas da abolição. Há várias notícias do envolvimento de libertos africanos com sociedades abolicionistas. Muitos acoitavam escravos fugidos, ou seja, os escondiam enquanto advogados faziam correr na Justiça ações de liberdade.
     A intensidade das revoltas e fugas coletivas foi uma das maiores evidências da crise do escravismo. A movimentação negra foi tão decisiva que um dos argumentos abolicionistas era de que só o fim do cativeiro libertaria o homem branco, visto como refém da resistência dos seus escravos. 
     Tinham razão os libertos de Vassouras ao reivindicarem a autoria da abolição.
     Talvez por terem sido os ex-cativos os legítimos autores da sua liberdade, as comemorações do 13 de maio só existem hoje em comunidades negras, a exemplo dos candomblés do Recôncavo baiano e dos congados do Sudeste.
Wlamyra R. De Alburquerque é diretora de arquivos da Fundação Pedro Calmon/SECULT-BA, professora da Universidade Estadual de Feira de Santana e co-autora do livro "Uma História do negro no Brasil (Rio de Janeiro: Ministério da Cultura - Fundação Palmares, 2006).

A terra prometida
Maria Alice Rezende de Carvalho
     Diversos projetos abolicionistas invadiram a cena política brasileira no último quarto do século XIX. O de André Rebouças foi um dos mais radicais. Talvez por isso tenha acabado derrotado.
     Mulato, baiano, filho de um membro proeminente da elite política imperial, Rebouças aclimatou-se desde muito cedo à vida na corte. Formado engenheiro militar aos 22 anos, dedicou-se à modernização de portos e à construção de estradas, para dotar o Brasil de infraestrutura compatível com a chamada Segunda Revolução Industrial, que mobilizava a imaginação técnica de duas jovens nações emergentes: Estados Unidos e Alemanha. No entanto, frustrou-se em sucessivas iniciativas para a modernização material do país.
     Sua vida foi reanimada pelo abolicionismo. Era o primeiro movimento de formação de opinião no Brasil, e a ele o engenheiro e empresário emprestou toda a sua energia. Dedicado a compreender os mecanismos que emperravam o desenvolvimento do país, chegou à conclusão de que vivíamos um bloqueio estrutural para a emergência de indivíduos livres. E que a libertação dos escravos, por si só, não seria suficiente. Entendia a abolição como um primeiro passo, ao qual se seguiria uma necessária eliminação do monopólio da terra, pois a autonomia individual só seria possível com a transformação do ex-escravo em pequeno produtor independente. Era este, para Rebouças, o único caminho de libertação dos homens pobres do campo, pretos ou brancos, ex-escravos ou imigrantes. 
     Sua convicção resultou em diversas propostas, como a do imposto territorial progressivo. No entanto, como os outros liberais brasileiros de seu tempo, ele temia que uma revolução agrária e popular resultasse em guerra civil. E assim viu cancelado seu projeto de refundação nacional. A partir de meados dos anos 1880, passou a considerar que somente o imperador poderia dirigir o processo de libertação dos escravos e uma eventual reforma agrária. Por isso, quando D. Pedro II é banido, Rebouças conclui que não tem mais o que fazer no Brasil, e opta por exilar-se na Ilha da Madeira.
    Suicida-se em 1898, convencido de que a civilização brasileira, tal como a da Grécia antiga, se extinguira. Com a diferença de que, por aqui, ela sequer florescera.
Maria Alice R. De Carvalho é professora do Departamento de Sociologia e Política da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RIO) e autora do livro "O quinto século. André Rebouças e a construção do Brasil (Rio de Janeiro: REVAN, 1998)

A santa e a dádiva
Lilia Schwarcz
     “Meu caro barão (de Penedo). Está feita a abolição! Ninguém podia esperar tão cedo tão grande fato e também nunca um fato nacional foi comemorado tanto entre nós. (...) Isabel ficou como a última acoitadora de escravos que fez do trono um quilombo (...). A monarchia está mais popullar do que nunca”. Assim Joaquim Nabuco descreveu os dias de júbilo que se seguiram ao 13 de maio de 1888.
     A Lei Áurea era mesmo popular, e conferia nova visibilidade à princesa Isabel e à monarquia. No entanto, politicamente, o Império tinha seus dias contados, ao perder o apoio dos fazendeiros do Vale do Paraíba. Apesar do clima de euforia reinante, parecia ser o último ato do teatro imperial.
     Mas, às vezes, o último é também o primeiro. Em meio a uma sociedade de marcas pessoais e de culto ao personalismo, a abolição foi entendida e absorvida como uma “dádiva”. Um belo presente que merecia, portanto, troco e devolução. Isabel converte-se em a “Redentora” e o ato transforma-se em mérito de “dono único”. Decadente e falida como sistema, a monarquia recuperava força no imaginário ao vincular-se ao ato mais popular do Império. A “realeza política” associava-se a uma “realeza mitificada”, quase mágica, senhora da justiça e da segurança.
      Nos jornais e nas imagens de época, Isabel passa a ser retratada como uma santa a redimir os escravos, que aparecem sempre descalços e ajoelhados, como a rezar e a abençoar a padroeira. Já a princesa surge de pé e ereta, contrastada com a posição curvada e humilde dos ex-escravos, que parecem manter a sua situação — se não mais real, ao menos simbólica. Aos escravos recém-libertos só restaria a resposta servil e subserviente, reconhecedora do tamanho do “presente” recebido.
      Estava inaugurada uma maneira complicada de lidar com a questão dos direitos civis. Sem a compreensão de que a abolição era resultado de um movimento coletivo, permanecíamos atados ao complicado jogo das relações pessoais, suas contraprestações e deveres: chave do personalismo e do próprio clientelismo. Nova versão para uma estrutura antiga, em que as relações privadas se impõem sobre as esferas públicas de atuação.
     Como se fôssemos avessos a qualquer associação com a violência, apenas reproduzimos hierarquias que, de tão assentadas, pareciam legitimadas pela própria natureza. Péssima lição de cidadania: a liberdade combinada com humildade e servidão, distante das noções de livre-arbítrio e de responsabilidade individual.
Lilia Moritz Schwarcz é professora titular da Universidade de São Paulo e autora do livro Espetáculo das raças. (São Paulo: Companhia das Letras, 2004).

Guerra de versões
Robert Daibert Jr.
     Desde a metade do século XIX a monarquia mostrou-se disposta a aprovar projetos abolicionistas. Em meio ao aumento da violência em conflitos entre escravos e senhores, as leis do Ventre Livre (1871) e dos Sexagenários (1885) buscavam manter a grande produção agrícola e preservar a ordem social.
     Este processo fez crescer a oposição dos proprietários escravocratas, que engrossavam as fileiras republicanas. Ao afastar-se deles, a monarquia se preparava para construir uma nova base de legitimidade, sintonizada com grupos emergentes (como os setores médios urbanos) e com as expectativas gerais da população. Para isso, investiu pesado na propaganda que associava a abolição a uma ação exclusiva da princesa Isabel. Uma espécie de febre monarquista, de natureza cultural e religiosa, foi difundida naquele momento. Valendo-se de concepções de realeza herdadas da África, foi natural para os negros adotar essa ideia da abolição como uma redenção concedida pela monarquia. Ela se espalhou pelos espaços da cultura popular, fortalecida em seu caráter místico e africanizado.
     Após a queda da monarquia, a República tentou ligar-se à memória da abolição. Seu principal argumento era a recusa do Exército em capturar os escravos fugidos. Reivindicava-se, assim, o reconhecimento dos republicanos militares como atores da abolição e redentores da pátria livre. Nos manuais escolares, o ensino da história da abolição exaltava como heróis republicanos Silva Jardim e Deodoro da Fonseca. Nas comemorações oficiais da abolição, o 13 de maio e o 15 de novembro eram apresentados como datas complementares de um mesmo processo de modernização do país, marcos de uma nova era que proporcionou o exercício pleno da cidadania, abrindo as portas do Brasil ao progresso e à civilização. De modo complementar, ligavam o sistema monárquico à escravidão e ao atraso do país, além de silenciar o nome da princesa Isabel no processo de aprovação do projeto convertido em lei.
     Mas a estratégia não conquistou os libertos e os afrodescendentes. Houve derramamento de sangue e tentativas de resistência após a proclamação da República. O novo regime foi assombrado por fuzilamentos em massa, espancamentos de negros fiéis à sua “Redentora”, prisão e deportação de líderes da Guarda Negra (espécie de milícia organizada para defender a monarquia e a princesa Isabel) e conflitos com ex-escravos que se recusavam a trabalhar para fazendeiros republicanos. Muitos negros, convencidos de que deviam sua liberdade ao trono, tornavam-se mártires pela monarquia. Consequentemente, foram esquecidos pela República. 
Robert Daibert Júnior é professor do Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora e autor de "Isabel, a "redentora" dos escravos: Uma história da princesa entre olhares negros e brancos (1846-1988). (Bauru: Editora do Sagrado Coração - EDUSC, 2004)"


Exemplos a não seguir
Brasil e Cuba adiaram a libertação de seus escravos com leis que evitavamcolocar em risco as hierarquias raciais
     O século XIX estava perto do fim, mas Cuba e Brasil mantinham-se como as únicas regiões das Américas onde persistia a escravidão. A posição nada honrosa foi resultado de uma política de postergação do problema, com leis de emancipação gradual, até que a situação ficasse insustentável. Enfim, ficou.
     No Império do Brasil, a Lei do Ventre Livre, de 1871, libertava todas as crianças nascidas de mães escravas. A mesma lei instituiu medidas como a “alforria forçada”, obrigando o senhor a libertar o escravo que possuísse a quantia correspondente ao seu valor. Na Cuba ainda sob o domínio espanhol, a Lei Moret, de 1870, se assemelhava às iniciativas brasileiras: liberdade para todas as crianças nascidas de escravos a partir de 1868 e para todos os escravos com mais de 60 anos. A lei permitia ao escravo vítima de “crueldade excessiva”, submetido a uma grande quantidade de açoites, por exemplo, reivindicar a liberdade.
     Mas a legislação cubana foi aprovada por força de uma guerra anticolonial que agitou os escravos – muitos fugiram das fazendas, outros se incorporaram ao Exército Libertador, que lutava pela independência da ilha. Conhecida como Guerra dos Dez Anos (1868-1878), a campanha eclodiu em função de uma motivação nacionalista contra a Espanha, liderada por setores médios criollos (nascidos em Cuba), pequenos proprietários de escravos e negros livres urbanos. Durante a contenda, foi incorporada também a luta contra a escravidão. A independência mesmo só iria ocorrer em 1898, após outra guerra que durou três anos, e que teve a participação dos Estados Unidos, dando início à intervenção direta dos norte-americanos na ilha.
     Mesmo antes das leis emancipacionistas, escravos em Cuba e no Brasil já recorriam à Justiça para obter alforria. Os brasileiros usavam como argumentos a punição excessiva e situações como a de já ter sido libertado ou de ter entrado no país após a abolição do tráfico. Os cubanos iam aos tribunais por conflitos com seus amos sobre o preço da alforria. Com a aprovação da Lei Moret e da Lei do Ventre Livre, o Judiciário tornou-se um espaço ainda mais importante de disputa pela liberdade.
     A abolição do cativeiro em quase toda a América pressionava os últimos redutos escravocratas. Em 1879, uma comissão de parlamentares reuniu-se em Madri para discutir, entre outros temas, a escravidão em Cuba. As imagens da Guerra de Secessão (1861-1865) nos Estados Unidos, terminada 14 anos antes, ainda impressionavam as elites cubanas e as autoridades espanholas. Temia-se, para a ilha caribenha, um desfecho semelhante ao do vizinho Haiti – onde uma revolução dos negros em 1791 pôs fim à escravidão e, de quebra, ao domínio colonial francês. Alguns escravos e negros livres de Cuba tomavam a experiência haitiana como inspiração. No início do século XIX, circulavam por Havana gravuras com a imagem de Toussaint Louverture (1743-1803), escravo que se tornou o maior líder da revolução haitiana. Nas décadas seguintes, cativos envolvidos em conspirações antiescravistas, quando interrogados, demonstravam saber que os escravos haviam tomado o poder no Haiti – e alguns contavam com uma suposta ajuda dos haitianos para promover sua emancipação.
     Parlamentares e homens de governo que compunham a comissão de 1879 queriam evitar guerras sangrentas como as do Haiti e a dos Estados Unidos. Nos acirrados debates em Madri, a situação do Brasil foi bastante citada. A legislação emancipacionista brasileira era vista como exemplo de sucesso, pois, segundo os parlamentares, teria evitado o confronto armado, o declínio da produção e os conflitos raciais. Parecia ser uma lição para Cuba: a solução gradual extinguiria paulatinamente a escravidão sem colocar em risco as hierarquias raciais. Mas a marcha da liberdade no Brasil estava lenta demais. Em discurso dissonante na comissão, um dos parlamentares criticou: “E a opinião pública do Brasil, o que tem feito? Resolver a questão no sentido da abolição gradual. E como? (...) Pois bem: a lei gradual do Brasil é muito inferior à da abolição gradual de 1870 [Lei Moret]; cem anos pode viver o escravo naquele império sem que lhe alcance o benefício da redenção”.
     Cuba não podia se dar ao luxo de esperar mais. Havia notícias de “desordens e perturbações” nas plantações. Escravos da parte oriental da ilha começavam a desertar em massa das fazendas. Muitos dos que permaneciam promoviam uma “resistência” passiva ao trabalho. Em 1878, após dez anos de guerra, havia sido assinado um tratado de paz (Pacto de Zanjón). Os revoltosos capitularam e saíram da guerra sem a independência e sem a abolição. Mas alguns líderes do Exército Libertador, descontentes, iniciaram uma nova insurreição cerca de um mês antes da primeira reunião da comissão. É o caso de Antonio Maceo (1845-1896). Negro livre da província de Santiago de Cuba, Maceo havia se ligado à Guerra de Dez Anos em 1868 como soldado, destacara-se nas batalhas e chegara a ocupar o posto de general do Exército Libertador. Leitor de biografias de Toussaint Loverture, ele defendia a abolição completa e incondicional. Exortava os escravos a que deixassem as plantações e lutassem com as armas pela liberdade. O governo colonial, para enfraquecer o movimento, caracterizou a mobilização negra pela independência e pela abolição como “guerra racial”.
     Diante de tais pressões, a comissão reunida em Madri elaborou e enviou aos parlamentares cinco projetos de abolição. Um deles previa um período de “patronato”, em que os ex-escravos permaneceriam sob a tutela dos ex-senhores. Com algumas modificações, este projeto se transformou na Lei do Patronato, que foi aprovada pelas cortes espanholas em 13 de fevereiro de 1880. Embora falasse de “abolição imediata” em Cuba, o texto instituiu o patronatodos antigos senhores, concedendo aos ex-escravos o direito de receberem um pagamento, módico e simbólico, de três pesos mensais. A partir de 1884, os patronos estariam obrigados a liberar um quarto dos patrocinados em seu poder, começando pelos mais velhos. Quando a Lei do Patronato foi aprovada, havia em Cuba cerca de 194 mil escravos. No término do prazo estabelecido, em 7 de outubro de 1886, restavam apenas 25.381 patrocinadosa serem libertos.
     No final de 1886, o Brasil era o último país das Américas a manter a escravidão. Calcula-se que naquele momento ainda existiam mais de meio milhão de escravos. Minas Gerais (191.952), Rio de Janeiro (162.421), São Paulo (107.329) e Bahia (76.838) eram as províncias com o maior número de cativos no país. Nenhum projeto de abolição havia sido apresentado no Parlamento, e vigorava ainda a Lei dos Sexagenários, que em 1885 libertou todos os escravos com mais de 60 anos e que previa cerca de 13 anos para a extinção total da escravidão. Para muitos contemporâneos, isso significava que a escravidão já estava abolida no Brasil. Mas a opinião pública exigia a resolução imediata do problema servil. O movimento abolicionista estava a todo vapor. Comícios, saraus, peças teatrais e eventos para arrecadar fundos para a compra de alforrias movimentavam as cidades. Redes envolvendo intelectuais, advogados, negros livres e escravos aliavam a luta pela liberdade nos tribunais e na imprensa com ações como fuga e acoitamento (ocultação) de escravos. Escravos fugiam em massa das fazendas (sobretudo em São Paulo, mas também em outras regiões do Brasil) e recusavam-se a continuar trabalhando nas plantações.
     Nesse clima de “desordem” foi assinada a Lei da Abolição. Diferentemente das leis do Ventre Livre (1871) e dos Sexagenários (1885), a lei de 13 de maio foi aprovada às pressas, não tendo sido objeto de muitas discussões. A temperatura do debate público exigia urgência na solução da questão. O projeto foi apresentado à Câmara dos Deputados no dia 8 de maio, aprovado em segunda discussão no dia 9 e convertido em lei no dia 13. Escravistas de plantão exigiram indenização para os ex-senhores e leis que obrigassem os libertos a trabalhar. Mas não havia clima político para a tomada de medidas que sugerissem um novo tipo de escravidão. Foi aprovada a liberdade imediata e incondicional. Neste dia, encerrava-se a longa história de escravidão negra nas Américas.
Iacy Maia Mata é professora da Universidade do Estado da Bahia, autora da tese “Conspirações da ‘Raça de Cor’: escravidão, liberdade e tensões raciais em Santiago de Cuba (1864-1881)” (Unicamp, 2012).

Saiba mais - Bibliografia
ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de. O jogo da dissimulação: abolição e cidadania negra no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
FERRER, Ada; GARCIA RODRIGUEZ, Gloria; Opatrný, Josef. El rumor de Haití en Cuba: temor, raza y rebeldía, 1789-1844. Madrid: Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 2004.
MENDONÇA, Joseli Nunes. Cenas da Abolição: escravos e senhores no Parlamento e na Justiça. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2001. 
SCOTT, Rebecca J. Emancipação escrava em Cuba: a transição para o trabalho livre, 1860-1899. Rio de Janeiro: Paz e Terra; Campinas: Unicamp, 1991.

Saiba mais – Documentários

Abolição
Produzido em 1988, faz o resgate de 100 anos de abolição no país, através de um olhar preto. Entrevistas com personagens importantes para a preservação da cultura, como Abdias do Nascimento, Lélia Gonzalés, Beatriz do Nascimento, Grande Otelo, Joel Ruffino, Dom Elder Câmera em contraposição com D. João de Orleans e Bragança e Gilberto Freire. Um importante documento das ideias desses pensadores, como também de presidiários, mendigos e artistas populares na sua maioria negros. Questiona que tipo de abolição houve neste país já que a situação 100 anos depois continuava de muita luta, desigualdade e racismo.
Direção: Zózimo Bulbul
Ano: 1988
Áudio: Português
www.torrentdownloads.me/download/1651757159/Aboli+O+%28z+Zimo+Bulbul+1988%29Duração: 152 minutos
Tamanho: 676 MB

A Negação Do Brasil
Vencedor do Festival É Tudo Verdade de 2001, o documentário traz à tona a história das lutas dos atores negros pelo reconhecimento de sua importância na história da telenovela brasileira. O filme é enriquecido ainda mais com depoimentos de atores como Milton Gonçalves, Ruth de Souza, Léa Garcia, Zezé Motta e Maria Ceiça, entre outros, que contam suas experiências e discutem o preconceito contra artistas negros. O diretor Joel Zito Araújo, baseado em suas memórias, e em uma minuciosa investigação, analisa as influências das telenovelas nos processos de identidade étnica dos afro-brasileiros. Junto ao documentário, o autor lançou no mesmo ano (dezembro de 2000) o livro "A Negação do Brasil – o negro na telenovela brasileira" pela Editora Senac.
Direção: Joel Zito Araújo
Ano: 2000
Áudio: Português
http://thepiratebay.sx/torrent/9210072 Duração: 91 minutos
Tamanho: 343 MB

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