“E agora que vocês viram no que a coisa deu, jamais esqueçam como foi que tudo começou” (Bertolt Brecht)

sábado, 5 de outubro de 2013

Mesma história americana

Líder de grupo neonazista é preso por assassinato. A suástica marcada em seu peito tem pouco a ver com o falecido governo fascista: é usada como instrumento de identificação com a imposição da ordem pela violência.
Joelhos contra o chão, botas de soldado e mãos erguidas atrás da cabeça. Cada pedaço do corpo parecia esculpido, perfeito, trabalhado como uma máquina cuja marca estava inscrita no peito. A suástica nazista de Derek Vinyard (interpretado por Edward Norton) não é uma espécie de ode a Hitler ou ao já falido regime alemão, mas um didático instrumento de identificação com a violência como forma de defesa da propriedade, do lar confortável, do emprego estável, da mulher submissa, da pele branca e dos seus hipnotizantes olhos azuis. Não há como deixar de mencionar o olhar assassino do protagonista lançado à vítima, antes do golpe final, quando o negro que tentara roubar seu carro aguarda a morte mordendo o meio-fio.
     Esta não é A Outra história Americana, é a mesma, aquela do dogma da democracia dos mais fortes e do progresso utilitário da natureza humana. Embora nenhum dos dois lemas tenha nascido ali, foi nos Estados Unidos dos anos 70 do último século que a sua combinação deu lugar a um espírito americano copiado em quase todas as partes do mundo ocidental, e muito bem representado na cena de abertura do filme. Derek é o homem com senso de autoconfiança inabalável, consciência política moldada às restrições da mente profundamente capitalista, e uma voracidade carnal latente e expressa em quase todas as suas relações. 
     Em publicação recente, o historiador Ciro Flamarion Cardoso discute Por que os humanos agem como agem e afirma de antemão que esta é sempre uma questão de tempo. Aqui, dois grandes processos se combinam: as determinações estruturais, algo que nos torna filhos de uma época e que foge ao controle e muitas vezes à consciência individual e coletiva; e os mecanismos que nos levam a escolher entre uma e não outra possibilidade de viver e de sentir, com todos os seus valores e implicações. Em grande medida esta é não só a questão que move a narrativa dirigida pelo inglês Tony Kaye em 1998, mas um impasse existencial, objeto da História e a motivação individual para a obsessão pela memória e pela capacidade de explicar onde foi que as coisas deram errado.
     Em busca dessa resposta, o diretor dá menos importância aos movimentos públicos, caricatos e reduzidos à estética do poder e da violência, eles aparecem como manifestações arruaceiras, passatempo de jovens vagabundos talvez, certamente tendências passageiras da superfície social. Stacey (Fairuza Balk), a namorada de Derek, por exemplo, tem enormes olhos e lábios, usa calças justas de couro e coturnos violentamente sedutores, repete frases pela metade, hinos coletivos e regozija-se com o poder aparente das massas em êxtase ao invadir mercearias de chineses ou latinos. Danny (Edward Furlong) é o irmão de aparência andrógina, apaixonado pela autoridade e, consequentemente, fascinado pela obediência quase como se este fosse o seu vínculo erótico, muito mais do que uma percepção do raciocínio. São personagens apresentados como menos complexos; menos resistentes diante da força das tradições americanas que emergiram após o ano de 1968.
Apropriação da suástica
     Ao mesmo tempo em que a data tornou-se o ápice de um movimento de transformação no pensamento de esquerda no mundo, a reação no campo oposto da política e da cultura não deixou por menos. Nos Estados Unidos, Martin Luther King não viveu para se sentar à “mesa da fraternidade” com a qual sonhara; e a luta dos negros e dos homossexuais, assim como toda a consolidação do multiculturalismo como “política da diferença”, da singularidade, e não mais das classes, foi acompanhada pelo crescimento dos movimentos de extrema direita, municiados agora pela experiência histórica da indústria da morte nazista.
     A apropriação de símbolos como a suástica ou a saudação a Hitler somou-se a um espírito que não poderia ter surgido senão no país mais poderoso do mundo após a Segunda Guerra Mundial; em uma nação cuja história e identidade nacionais estavam alicerçadas pela crença em uma vocação divina para a conquista. Sobre a chegada do homem à lua, o presidente Richard Nixon teria afirmado em 1969 que se tratava do evento mais importante desde a Criação, “prontamente colocando Jesus Cristo no seu lugar”, lembra o historiador húngaro John Lucáks. E para completar essa espécie arriscada de fórmula estrutural para a simpatia pelo ódio racial norte-americano, a onda de desemprego e inflação nos anos 70 parece imprescindível, de modo que o discurso do amor pela “Nação”, pela “Pátria”, vai incluindo pouco a pouco uma ira que se volta contra as pessoas reais, numa luta diária pelo sonho americano.
     Contingência, acaso, fatalidade, ou como quer que se defina aquilo que Bob Dylan chamou em 1975 de Simple Twist Of Fate, a prisão inesperada foi o acontecimento que levou o líder neonazista Vinyard à experiência vertiginosa do fim da história linear. Um retrato difuso de si, de suas convicções e de todo o seu próprio passado emergem diante da incapacidade de controlar as circunstâncias, de prever as relações e reações à sua volta, de organizar em arquivos mentais separados o certo e o errado, o branco e o preto, a liberdade e a submissão. A suástica no peito antes utilizada como demonstração de força, produz agora outro de tipo de atração entre os seus pares, que o fazem vítima de um estupro coletivo durante o banho.  A cor da pele, até então entendida como senha para os direitos cívicos do homem americano e de uma consciência heroica que legitima a violência da dominação, torna-se simplesmente indiferente; deixa de ser algo contra o qual se deva defender num ambiente em que, ao contrário, a sobrevivência não depende da singularidade, mas das tentativas realizadas por cada um e por cada grupo para construir uma identificação.
Reorganização do passado
     O processo trilhado por Derek para recolher os pedacinhos de sua identidade e dar novo sentido à sua história passa por uma reorganização do passado cuja fonte é a própria memória afetiva. As cenas de um cotidiano já distante, à mesa do café e com a presença do pai (um bombeiro morto heroicamente) ganham sons e cheiros. Os diálogos entrecortados pela mastigação discutem o quanto os imigrantes estão roubando empregos, minorias conquistando direitos, espaços e bens, enfim, sobre o quanto as coisas estavam mudando.
     Nessa história americana, como em qualquer outra, compreender as possíveis raízes de sentimentos individuais, a forma pela qual os conceitos viram verdades e as ideologias tornam-se formas de viver, não pode resolver as contradições que impregnam a vida no tempo presente, mas será sempre um bom caminho para enfrentar aquilo que nos faz ser quem somos.
Direção: Tony Kaye
Ano: 1998
Áudio: Português
Duração: 118 minutos

Saiba mais - Filme
Tolerância Zero
Um dos filmes mais perturbadores da história do cinema. "Tolerância Zero" é a história verídica de Danny Balint, um jovem aluno de uma escola judia de Nova York, que com os anos se transforma em um furioso skinhead e passa a perseguir estudantes judeus. Aos poucos Danny começa a descobrir sua personalidade neofascista, ao mesmo tempo que tenta entender o significado do judaísmo em sua vida. Considerado pela crítica como um dos melhores filmes americanos do começo do século, Tolerância Zero é um filme intrigante com memoráveis interpretações.
Direção: Henry Bean
Ano: 2001
Áudio: Português
Duração: 98 minutos
Tamanho: 339 MB

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