“E agora que vocês viram no que a coisa deu, jamais esqueçam como foi que tudo começou” (Bertolt Brecht)

quarta-feira, 8 de março de 2017

O Brasil espanhol

Ao contrário do que muitas pessoas pensam, Portugal não foi o único soberano ao longo de nossa história colonial.
Jacqueline Hermann
      É comum a afirmação de que o Brasil foi uma colônia governada pelos portugueses de 1500 a 1822, data em que a Independência dissolveu os laços de submissão à antiga metrópole. A chamada União Ibérica parece não fazer diferença para a análise de nosso período colonial. Esta percepção talvez decorra de uma interpretação simplificada e superficial, segundo a qual a união dos dois reinos peninsulares se fez com a manutenção plena dos direitos e prerrogativas dos portugueses, tanto no reino como em seus espaços coloniais. Mas o silêncio acerca desses sessenta anos de dominação espanhola implica desconsiderar a complexidade da arquitetura política desenhada no período, tendo em vista o concreto exercício do poder da dinastia Habsburgo sobre o reino anexado e seus domínios no além-mar.
      Iniciada em 1580, a União Ibérica foi uma das consequências mais dramáticas da derrota de d. Sebastião em Alcácer Quibir, dois anos antes. Celibatário, o rei não deixara herdeiros, abrindo uma disputada crise sucessória da qual saiu vencedor o então rei espanhol, Felipe II. Sua estratégia combinou o assédio sistemático a membros da alta nobreza e do alto clero, com a presença militar ostensiva nas fronteiras lusitanas. Desta ofensiva nasceu o Portugal dos Filipes, produto de uma negociação cujo resultado deu base à agregação do reino à monarquia católica em 1580.
      A consolidação prática dessa agregação foi, no entanto, bem mais difícil do que os Habsburgo esperavam, apesar de estarem habituados a dirigir uma monarquia compósita, uma vez que a Espanha era formada por partes heterogêneas e híbridas política e culturalmente. O projeto de enquadrar o reino e seus domínios coloniais ao modo hispânico de governar, bem mais centralizado e administrativamente estruturado, enfrentou inúmeras dificuldades dentro e fora do reino, além de diversas conjunturas internacionais, fundamentais para a compreensão da poderosa rede de inimigos fomentada pelas ambições imperiais de Espanha. A anexação de Portugal e de suas colônias coroava, sem trocadilho, o poderio irrefreável do rei católico, provocando o continuado assédio, sobretudo de França e Holanda, aos territórios incorporados à monarquia castelhana.
      No caso do Brasil, é preciso matizar sua importância para os Habsburgo ao longo da união dos dois reinos - já que em 1580 era pouco mais do que uma estreita faixa costeira, ainda pouco produtiva e povoada; situação bem diferente da América portuguesa restaurada em 1640.
      De forma bem resumida, é possível relacionar algumas medidas que indicam o empenho espanhol em realizar mudanças político-administrativas visando o maior controle dos espaços anexados, contando para isso com os serviços da nobreza que aderiu à causa da união. Filipe I (1580-1598) começou a implementar reformas na Justiça e administração de Portugal desde 1582 - a mais estrutural, a promulgação das Ordenações Filipinas (um código de leis vigente no Brasil até meados do século XIX), ocorreu em 1603, já no reinado de Filipe II (1598-1621). Neste mesmo ano foi criado o Conselho de Portugal, responsável pela mediação política entre reino e rei, em 1604 o Conselho das índias e Conquistas Ultramarinas, com o objetivo de centralizar a gestão da política colonial. Mas talvez a ação mais sentida na colônia brasílica ainda no tempo do primeiro Filipe tenha sido a inspeção efetivada pela Primeira Visitação do Santo Ofício às Partes do Brasil, entre 1591 e 1595. Embora em Portugal funcionasse um Tribunal desde 1540, nunca o Brasil havia sofrido diretamente uma sindicância inquisitorial.
      O início do reinado de Filipe II foi marcado por sistemáticas incursões estrangeiras às costas do Brasil, dentre as quais a francesa foi a mais bem-sucedida, com a ocupação do Maranhão entre 1612 e 1615. O fim da França Equinocial - projeto francês - marcou a expansão para o norte e foi importante para a divisão interna do poder a favor do rei espanhol. A criação do Estado do Maranhão e Grão-Pará, separado do Estado do Brasil, planejada desde 1618 e efetivada em 1621, pode ser analisada como mais um desdobramento do esforço espanhol para dividir o poder colonial e enfrentar as resistências locais, sobretudo na Bahia e Pernambuco.
      O auge do assédio ao Brasil deu-se no reinado de Filipe III (1621-1640), face mais conhecida do período filipino, embora nem sempre claramente relacionado a ele: primeiro, a tentativa de invasão holandesa à Bahia, em 1624, e a sua efetiva instalação em Pernambuco em 1630. Exemplos eloquentes desse continuado cerco são os quase trinta fortes construídos nos sessenta anos da União Ibérica, fruto da importância estratégica e econômica assumida pela colônia na primeira metade do XVII e da conjuntura internacional antiespanhola.
      A história do Brasil entre 1580 e 1640, período da União Ibérica, portanto, passou por transformações importantes, tanto na esfera de sua organização político-administrativa como econômica, além da expansão territorial para o norte, o sul e o centro-oeste, jamais reclamada pelos espanhóis depois da Restauração.

Jacqueline Hermann é professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autora de No reino do Desejado. A construção do sebastianismo em Portugal, séculos XVI e XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

Fonte: Revista Nossa História - Ano IV nº 38 - Dezembro 2006

Saiba Mais – Bibliografia
MARQUES, Guida. "O Estado do Brasil na União Ibérica. Dinâmicas políticas no Brasil no tempo de Filipe II de Portugal", em Penélope. Revista de História e Ciências Sociais, n. 27, Lisboa, 2002, p.7-35.
SCHWARTZ, Stuatt B. Burocracia e sociedade no Brasil colonial. São Paulo: Perspectiva, 1979.
SERRÃO, Joaquim Veríssimo. O tempo dos Filipes em Portugal e no Brasil (1580-1668). Lisboa: Edições Colibri, 1994.
STELLA, Roseli Santaella. O domínio espanhol no Brasil durante a Monarquia dos Filipes, 1580-1640. São Paulo: Unibero / CenaUn, 2000.

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