“E agora que vocês viram no que a coisa deu, jamais esqueçam como foi que tudo começou” (Bertolt Brecht)

domingo, 2 de abril de 2017

A cachaça no poder!

Revoltosos do século XVII invadem o Rio de Janeiro, derrubam o governador, assumem o comando político da capitania e acabam conseguindo o que queriam: liberar a venda da “caninha".
Antonio Filipe Pereira Caetano
      Na madrugada de 8 de novembro de 1660, revoltosos saídos da freguesia de São Gonçalo de Amarante, no recôncavo fluminense, atravessaram a baía da Guanabara de armas nas mãos e invadiram a câmara da capitania do Rio de Janeiro. Objetivo: derrubar o governador Salvador Correia de Sá e Benevides. Como o ilustre administrador régio - cujos domínios se estendiam à Vila de São Paulo e à capitania do Espírito Santo - se achava fora da cidade, os amotinados aprisionaram Tomé Correia de Alvarenga, o governador interino. Começava aí um episódio dos mais raros no tempo da Colônia. Um grupo de súditos rebelados da Coroa portuguesa consegue tomar o poder, numa capitania importante, à revelia do rei, e estabelecer um governo próprio, que durou cinco meses, impondo sua vontade na condução dos negócios de estado, promovendo inclusive mudanças significativas no cenário político-econômico local. Jerônimo Barbalho Bezerra, o líder da revolta, acabou morto. Apesar de o conflito não ter deixado rastros de destruição pela cidade do Rio de Janeiro, alterou profundamente o cotidiano da população fluminense e o sistema de poder regional.
      O movimento, designado por alguns como Revolta da Cachaça, resultou de um complexo conjunto de insatisfações acumuladas pelos proprietários de terras da região. A capitania do Rio de Janeiro encontrava-se, desde o início do século XVII, numa situação econômica complicada. A produção açucareira fluminense encalhava nos portos, pois, comparada ao açúcar produzido na Bahia e em Pernambuco, era considerada de má qualidade. Além disso, a expulsão dos holandeses do Nordeste, em 1654, havia produzido um grande baque na economia da América portuguesa, uma vez que esses antigos invasores transferiram com muita eficiência a produção do açúcar para as Antilhas, o que ocasionou o aumento da concorrência e a queda dos preços do produto no comércio internacional. A economia fluminense, naquele momento, voltava-se em larga escala para o comércio da cachaça, bebida de grande aceitação na América portuguesa e na costa africana.
      A produção da aguardente de cana se concentrava na região do recôncavo - São Gonçalo, Magé, Itaboraí, Saquarema, Cabo Frio, Maricá, Guapimirim -, onde foi desenvolvida uma cultura canavieira, durante os séculos XVI e XVII, paralelamente ao processo de conquista e povoamento da região pelos portugueses. Para os fazendeiros, era um ótimo negócio, pois para fazer a cachaça utilizavam o mesmo sistema produtivo do açúcar, sem muitos gastos adicionais, e, além disso, não era preciso dividir o produto com os lavradores, pois enquanto estes se responsabilizavam pelo plantio, os senhores de engenho transformavam a cana em açúcar. A cachaça era considerada resto da produção de cana, não interessando aos lavradores. Mas com a criação, em 1649, da Companhia Geral do Comércio, pela Coroa portuguesa, o quadro mudou e os produtores começaram a se sentir prejudicados. Acende-se, aí, o estopim da revolta. A Companhia passou a deter o monopólio exclusivo do comércio da farinha, do bacalhau, do azeite e do vinho, o que não afetava os produtores da Colônia. Mas, paralelamente, tomou uma decisão drástica: proibiu a produção e o consumo da cachaça fabricada na América portuguesa. Isso era inadmissível. Era a cachaça, sobretudo, que movimentava a economia fluminense numa atividade comercial triangular e bem estabelecida: com o produto que saía do porto do Rio de Janeiro se compravam escravos, em Luanda, e prata, ao sul do continente.
      A medida protecionista se explicava no contexto da economia colonial. A cachaça era, então, o principal concorrente do vinho português, este usado também como moeda de troca na aquisição de escravos africanos. A aguardente de cana tornou-se popularmente conhecida e apreciada já naquela época porque era mais barata, não estragava, conservava por mais tempo o teor alcoólico e, além disso, chegava mais depressa à África que o vinho, com a vantagem de que, acondicionada nos porões, servia de lastro aos navios, diminuindo assim os gastos com transporte. Por tudo isso, a Coroa portuguesa queria impedir a presença da cachaça na África e no Brasil, para impor o consumo do seu produto. No meio dessa crise, o governador da capitania do Rio de Janeiro, Salvador de Sá, teve uma infeliz ideia: criar um novo imposto, com o qual pagaria os soldos das milícias fluminenses, que estavam atrasados, e renovaria o fardamento e armamento das tropas, que estavam em condições lamentáveis.
      Tanto a proibição da cachaça como o novo imposto produziram reações indignadas. Depois de inúmeras discussões no Senado da Câmara, os grandes proprietários aconselharam o governador a aceitar contribuições voluntárias, de acordo com a possibilidade de cada súdito. Teimoso, Salvador de Sá impôs a taxação como queria e em seguida viajou para a Vila de São Paulo, a fim de fiscalizar atividades de mineração. Descontentes, os produtores do fundo da baía da Guanabara, mas que possuíam moradias e negócios na cidade do Rio de Janeiro, se reuniram nas terras de Jerônimo Barbalho Bezerra, na Ponta do Bravo, localizada na freguesia de São Gonçalo de Amarante (hoje conhecido como o Bairro Gradim) e arquitetaram a derrubada da administração. Entre as reivindicações estavam a menor rigidez nas questões relacionadas à comercialização da cachaça, como também uma divulgação mais transparente dos editais de convocação às eleições municipais. Os moradores de regiões mais afastadas (povoações no entorno da baía de Guanabara como São Gonçalo, Magé e Guapimirim) encontravam dificuldades de acesso ao documento, o que se refletia na ausência de seus representantes no fórum legislativo local.
      Às primeiras horas da manhã do dia 8, os revoltosos ergueram-se de armas em punho e convocaram os "homens livres" para uma reunião geral no edifício do Senado, ao toque dos sinos das igrejas. Ao perceber que sua guarnição de milicianos havia feito causa comum com os rebeldes, seduzidos pela promessa de que os soldos atrasados lhes seriam pagos integralmente, o governador interino Tomé Correia de Alvarenga - que era primo de Salvador de Sá fugiu para o santuário do Mosteiro de São Bento acompanhado do provedor-mor, Pedro de Souza Pereira, parentes e amigos mais chegados à sua família. A multidão pôs-se então a saquear suas casas, inclusive a do governador da capitania, enquanto uma reunião geral declarava que todos os Correia estavam depostos e destituídos de seus cargos. Ao se confrontar com os revoltosos, Tomé Correia de Alvarenga não aceitou suas reivindicações. Foi então preso e remetido a Portugal, junto com um documento que descrevia os desmandos praticados por Salvador de Sá.
      Derrubado o administrador régio, os revoltosos aclamaram Agostinho Barbalho Bezerra, irmão de Jerônimo, como novo governador. Este se mostrou relutante em aceitar o cargo, até porque não estava muito a par dos planos do irmão, líder da revolta. Para não ser governador, chegou a abrigar-se no santuário do Convento de São Francisco, mas os amotinados o arrancaram de lá à força, obrigando-o a aceitar o governo e ameaçando-o de morte, caso recusasse. No poder, Agostinho nomeou outros capitães de ordenança, marcou eleições para a Câmara local, expulsou da cidade todos os moradores que tinham algum tipo de relação com Salvador de Sá e tornou inválidas as determinações da Coroa com relação à proibição da comercialização da cachaça. Nascia um governo voltado especificamente para os interesses políticos e econômicos dos produtores. Assim, Agostinho, que tinha aceitado o cargo para salvar a própria vida, se mostrou muito rapidamente um governante conciliador: aconselhou mesmo os refugiados do Mosteiro de São Bento, virtuais inimigos, a voltar para suas casas na cidade, chegando até a tentar a reintegração de alguns deles em seus antigos cargos.
      Enquanto isso, na Vila de São Paulo, os ecos dos acontecimentos no Rio de Janeiro chegavam aos ouvidos de Salvador de Sá. Apoiado pelos paulistas, ele logo preparou um exército, formado por índios, para atacar o Rio de Janeiro e retomar o controle da capitania. Perdoava a população fluminense por ter apoiado os revoltosos e autorizava a administração temporária de Agostinho Barbalho Bezerra, reconhecido por ele mesmo como um homem de bem e que, conforme lhe informaram, se encontrava naquela situação por pressão dos amotinados. Por outro lado o governador condenava os atos dos principais líderes do movimento, acusando-os de traírem e desrespeitarem as determinações da Coroa portuguesa.
      O apoio oferecido pelos paulistas pode parecer estranho à primeira vista, principalmente porque, em 1640, eles haviam se confrontado com Salvador de Sá por conta da proibição de escravizar índios, expressa na bula papal de Urbano VIII, que ameaçava de excomunhão da Igreja Católica todos aqueles que escravizassem os indígenas. A bula foi apoiada por Salvador de Sá, para irritação dos paulistas. Mas, ao mesmo tempo, os paulistas deviam ser gratos ao governador da capitania por uma série de melhoramentos, como a construção de pontes e a abertura de estradas. Para eles, isso era mais importante que as reivindicações dos súditos do Rio de Janeiro. A economia paulista estava voltada para a produção de cereais, como o trigo, e não foi atingida pelas restrições impostas à economia da aguardente. Além disso, as taxações de Salvador de Sá não foram estendidas à Vila de São Paulo, de modo que não tinham do que reclamar. Apoiaram o governador e tornaram mais vulnerável a situação dos súditos fluminenses rebelados.
      A partir do momento em que Agostinho Barbalho ganhou o apoio de Salvador de Sá, os revoltosos o retiraram da administração da capitania, já que o mesmo se recusava, muitas vezes, a aplicar medidas exigidas pelos produtores fluminenses. Naquele momento, a Revolta da Cachaça havia se radicalizado. Uma junta foi formada para administrar a capitania no lugar de Agostinho e essa conjuntura confusa favoreceu Salvador de Sá na sua volta ao Rio de Janeiro. Segundo os esparsos relatos documentais, a invasão da cidade pelas tropas do governador se deu de madrugada, da mesma maneira como fizeram os revoltosos. O desfecho foi rápido. Preso, o líder Jerônimo Barbalho Bezerra foi enforcado e sua cabeça pendurada no pelourinho da cidade, como exemplo para a população fluminense. Os demais líderes - Diogo Lobo Pereira, Lucas da Silva e Jorge Ferreira de Bulhão - foram presos e enviados a Portugal para julgamento.
      Com o término da revolta, em 8 de abril de 1661, tudo parecia novamente calmo na capitania, até o momento em que a Coroa portuguesa decidiu pronunciar-se sobre o acontecimento. Após ter recebido as críticas feitas pelos revoltosos à administração de Salvador de Sá, o rei deu ouvidos a seus súditos e afastou o governador de sua função. Para ocupar o cargo, foi escolhido Pedro de Melo, que se encontrava em Portugal no momento da indicação. Agostinho Barbalho, cujo prestígio não se chamuscara com a revolta, ficou como administrador interino da capitania enquanto o titular atravessava o Atlântico. A Coroa restringiu também os privilégios da Companhia Geral do Comércio e, consequentemente, favoreceu a economia da cachaça. Anos mais tarde, absolveria os revoltosos presos, condecorando-os até com a comenda da Ordem de Cristo, como reconhecimento pela sua fidelidade e lealdade ao rei.
      Não se deve perder de vista que a Revolta da Cachaça não foi um movimento isolado no império ultramarino português. A partir de 1640, um terremoto de revoltas assolou os domínios portugueses. Todas iam contra o abuso no exercício do poder dos representantes régios (governadores, vice-reis, provedores e ouvidores), os quais, em vez de governarem visando ao bem comum e à preservação da ordem, estavam, segundo os revoltosos, interessados exclusivamente em se beneficiar dos cargos que ocupavam para conquistar riquezas, benesses e prestígio. Muitos desses funcionários foram considerados tiranos e infiéis à Coroa. Pelo entendimento que passou a vigorar, tais movimentos foram feitos em prol do rei português, e não contra ele. Embora violentas, as revoltas foram o recurso que os súditos descontentes encontraram para impor sua opinião.
      A ação dos revoltosos do século XVII tinha sua origem bem longe dali. As ideias que justificavam o direito a rebelião contra o governador tirano nasceu na Restauração portuguesa de 1640. A Restauração foi a tomada do controle político da Coroa portuguesa por uma nova dinastia, a dos Bragança, após sessenta anos de domínio espanhol - período denominado pelos historiadores como União Ibérica (1580-1640). Foi denunciando a tirania, a vilania e a sobreposição dos interesses privados aos coletivos que os portugueses conseguiram destronar Filipe IV, monarca espanhol que administrava o reino português. A aclamação de d. João IV, em 1640, pôs fim à União Ibérica e ao mesmo tempo abriu a brecha para que essas mesmas ideias fossem utilizadas pelos súditos ultramarinos para afastar administradores régios que não atendiam aos padrões de comportamento exigidos de um funcionário real.
      Logo, no cômputo geral, os rebelados saíram vitoriosos com o afastamento da família Correia da administração fluminense. Após o movimento de 1660, os representantes do clã só ocuparam cargos menores e nunca mais voltaram a ter o controle da capitania. Além disso, os descendentes tiveram que refazer as alianças, através do matrimônio, para manter sua atuação na política fluminense, uma vez que os proprietários de terra das regiões mais longínquas já se faziam mais presentes na Câmara local. A Coroa portuguesa ficou do lado de seus súditos, liberando a produção e a comercialização de aguardente. A Revolta da Cachaça entrou para a história como a primeira revolta em todo o Atlântico Sul em que os rebelados tomaram o poder em uma cidade colonial e a governaram em nome do rei. E da cachaça.

Antonio Filipe Pereira Caetano é professor da Fundação Universidade Estadual de Alagoas e autor da dissertação de mestrado “Entre a sombra e o Sol – A Revolta da Cachaça”. Defendida na Universidade Federal Fluminense (UFF), em 2000.

Fonte: Revista de História da Biblioteca Nacional - Edição nº 3 - Setembro de 2005

Saiba Mais – Bibliografia
BOXER, Charles R. Salvador de Sá e a luta pelo Brasil e Angola. São Paulo: Unesp, 1988.
COARACY. Vivaldo. O Rio de Janeiro no século XVII. Rio de Janeiro: José Olympio. 1968.
FIGUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida. "Além de súditos: notas sobre revoltas e identidade colonial na América portuguesa". Revista Tempo, volume 5 n° 10, dezembro de 2000.

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