“E agora que vocês viram no que a coisa deu, jamais esqueçam como foi que tudo começou” (Bertolt Brecht)

sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

Procurando negros e ouro


          A história dos quilombos e dos escravos que os habitaram é também uma empolgante narrativa de sonhos de liberdade. Durante os mais de trezentos anos de escravidão no Brasil funcionaram como "válvulas de escape" para as tensões e a violência do cotidiano das senzalas. Grave ameaça à estabilidade da classe senhorial - para quem os quilombos eram verdadeiras "assombrações”-, foram duramente reprimidos. Além dos capitães do mato, homens especializados na caça de negros fujões, periodicamente eram montadas expedições para a destruição de seus esconderijos. Uma destas partiu, em 1769, da fazenda do Capote (situada hoje no município de Lagoa Dourada, em Minas Gerais) rumo às regiões limítrofes das capitanias de Minas e Goiás. Por capricho do seu líder, o mestre-de-campo Inácio Correia Pamplona, tal expedição foi cuidadosamente relatada. Homem "obcecado em autopromoção”, como afirmou a historiadora Laura de Mello e Souza, Pamplona não só se preocupou com as andanças de sua tropa, como encomendou o desenho de seis plantas de quilombos, dentre as quais merece destaque a do quilombo de São Gonçalo.
          Ao que tudo indica, este se localizava nas proximidades do Triângulo Mineiro, na atual cidade de Araxá, num ponto estratégico entre as serras da região. O mapa apresentado em "fiel cópia", para mostrar como viviam os negros, ilustra um aspecto com um aos quilombos que se espalharam por todo o território colonial: uma eficiente organização interna. No desenho acima, pequenos números associados a uma legenda indicam seus pontos vitais como ferraria (I) ; buracos para fugas (II) ; horta (III) ; entrada com dois fogos [casas] (IV) ; trincheira (V) ; paredes de casa a casa (VI) ; casa de pilões (VII) ; saídas com estrepes [estacas] (VIII) ; matos (IX) ; e casa de tear (X). Logo que a tropa de Inácio Pamplona se deparou com o quilombo - dois meses após a partida da fazenda Capote -, um dos comandantes capturou um negro, pois os outros "calhambolas" - expressão usada para denominar escravos fugidos - escaparam para um novo esconderijo. Como era costume nestas empreitadas, foram confiscados alimentos, como farinha, e "vários trastes e panos de algodão", medida que coibia a reinstalação do abrigo. Os produtos feitos pelos negros serviam não só para o uso interno, mas também para as trocas clandestinas com as vilas e mercados próximos. Para o historiador Flávio Gomes, a sobrevivência dos quilombos se explica não pelo seu isolamento, mas pelo seu complexo envolvimento com a sociedade. O de São Gonçalo, por exemplo, ficava nas imediações da "picada de Goiás", caminho que ligava a capitania de Minas à de Goiás, e seus integrantes, segundo o estudioso José Martiniano da Silva, aterrorizavam as fazendas vizinhas, atacando chácaras e rebanhos.
            A quantidade de esconderijos de escravos era tamanha que, só em Minas Gerais, no século XVIII, o arqueólogo Carlos Magno Guimarães mapeou pelo menos 160 quilombos! Pode-se afirmar, então, que a procura do ouro e a caça aos escravos andavam de mão s dadas, como confirmam os versos toscos de um membro da expedição de Inácio Pamplona: "Tudo feito nesta maneira/ pólvora, chumbo e patrona,/ espingardas à bandoleira,/ entrando duas bandeiras/ Procurando negros e ouro/ Deus nos depare um tesouro". As autoridades locais, perturbadas com esta situação de descontrole da escravaria, conceberam punições bárbaras contra os fujões: cortar uma perna, o tendão-de-aquiles, impedindo-os de correr, ou um braço para aqueles que cometessem assassinato. A Coroa portuguesa, para tentar conter a cruel criatividade dos castigos, recomendava alternativas, como marcar com ferro em brasa a letra "F” sobre as costas ou cortar uma orelha, no caso de reincidência da fuga.
          Por estes motivos, homens de posses aceitavam a missão dispendiosa de financiar expedições de caça aos quilombolas. A do mestre-de-campo Inácio Pamplona era composta por 58 escravos armados com espingardas, facões e pólvora, músicos (nove escravos e um homem branco) que levavam violas, rabecas, trompas, flautas e tambores, 52 bestas de carga com comidas e bebidas, um cirurgião, sacerdotes e dois capitães. Além do de São Gonçalo, a comitiva passou pelos quilombos do Ambrósio, da Samambaia, do Rio da Perdição, dos Santos Fortes e o dos Braços da Perdição.
          Representações como a do quilombo de São Gonçalo são raríssimas e praticamente inéditas, por isto sua importância para a compreensão das formas de sobrevivência de milhares de negros foragidos, durante os séculos de escravidão no Brasil. O relato da expedição, Notícia diária e individual das marchas e acontecimentos mais condignos da jornada que fez o senhor Mestre de Campo Regente, e Guarda-mor Inácio Correia Pamplona..., se encontra na Divisão de Manuscritos da Biblioteca Nacional, e foi publicado, em 1988, no volume 108 dos Anais da Biblioteca Nacional. O leitor interessado pode consultar os Anais no site www.bn.br, clicando no link "Pesquisa no Acervo" e procurando em "Acervo Geral" a opção "Biblioteca Digital".

Fonte: Revista Nossa História - Ano 2  nº 13 - Novembro 2004

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